Esta postagem apresenta um texto de Lya Luft publicado em sua coluna quinzenal na revista Veja,
na edição de 20 de junho de 2012. Ler a coluna dessa lúcida escritora é um dos motivos que me levam a comprar a referida revista.
Comprar e não poder pagar
“‘A inadimplência de indivíduos e famílias cresce como abóboras em terra boa, e continuamos comprando sem a menor consciência de que logo estaremos atolados em dívidas.’
Colunista não tem de ser bonzinho nem antipático nem julgador nem acusador nem nada: tem de observar e, quando acha conveniente, comentar. Eu me espanto com tantas coisas ultimamente que nem sei o que escolher. O fracasso dos países em administrar suas contas; a ganância derrotando o bom-senso; a opressão dos mais fortes e a submissão dos mais fracos; e os interesses escusos nos orientando mais do que poderia ser. E a palavra-chave do momento, dívidas, dívidas, dívidas.
Bilhões e bilhões empregados para salvar bancos, e milhões de pessoas morrendo de miséria, de fome, de falta de higiene, de falta de dignidade - de falta de respeito de parte dos que deveriam ajudar em vez de gastar bilhões salvando bancos. Morram os bancos, não as pessoas inocentes, não as crianças, não os velhos, os fracos. Que ninguém tenha de chorar impotente por não poder salvar seus filhos. Mas salvam-se os bancos, o que tecnicamente há de ter suas explicações, mas humanamente me deixa amargurada e perplexa, pois, mesmo não sendo economista, eu vivo neste planeta, e tudo observo e registro com este impotente sofrimento.
Mas no cotidiano, esse agir miúdo de todo dia, de todos nós, de certa forma cada um é especialista. Eu vejo ao meu redor, ou na televisão, na imprensa em geral, a postura delirante das pessoas, certas pessoas, muitas pessoas, com relação ao seu orçamento. A matemática é a mais primária: se ganho 2.000, não posso gastar 2.500. Se ganho 20.000, não posso gastar 22.000. Essa conta que qualquer criança de escola elementar entende - ou entenderia se nosso ensino fosse diferente - parece não passar pela cabeça dos grandes consumidores, nem dos microconsumidores, esses que dizem em entrevistas de rua que não podem resistir a uma lingerie bonita, a uma camiseta original, a um eletrodoméstico e tantas maravilhas mais, tudo em doze prestações. Compra-se a prestação no supermercado, compra-se com cartão de crédito sem ter mais crédito. Então cobrimos o buraco com cheque especial. Dali passamos a qualquer outro recurso. Não nos lembramos de calcular os juros. Não nos lembramos que dez compras baratinhas em várias prestações por semana acabarão em grandes dívidas crescentes durante muitos anos.
Isso não ocorre porque somos burros, ignorantes, fúteis, bobos, viciados em gastar, insensatos, mal orientados, indiferentes? Não sei. Não chego a nenhuma conclusão. Mas a inadimplência de indivíduos e famílas cresce como abóboras em terra boa, e continuamos comprando sem a menor consciência de que logo estaremos atolados em dívidas, o objeto do nosso desejo retomado pelo vendedor, inclusive o adorado carrinho novo. A mensalidade dos filhos na escola atrasada, nosso respeito pessoal entrando pelo ralo, o desespero baixando como um nevoeiro feio.
Não me considero particularmente obtusa nem especialmente ignorante: mas o que vejo diariamente me dói como se fossem pessoas de minha família, de minha amizade, essas moças, ou senhores, que na televisão sorriem amarelo admitindo que não resistem a boas ofertas nos shoppings e à habilidade de vendedores que, diante de qualquer hesitação, voz do bom-senso, oferecem prestações baixinhas em número espantoso. E toca a comprar qualquer bobagem como se achássemos que alguém vai dar um jeito, alguém vai cuidar de nós, anulando compromissos que estamos assumindo sem entender.
E assim, às vezes com estímulo de autoridades responsáveis sobretudo pela camada mais desinformada e deseducada do país, de grão em grão esvaziam-se a bolsa, a conta bancária, a credibilidade, o sossego de quem agora recebe diariamente telefonemas de credores legitimamente insistentes: deve, então paga.
A bolha de inadimplência entre nós há de estourar um dia, como ocorreu e ocorre em outros países ditos mais adiantados. Não sei quem então vai nos ajudar. Mas sei que a burrice humana, um de nossos maiores males, independe da localização no mapa deste mundo, em crise pela sua própria irresponsabilidade."
Colunista tem de observar e, quando acha conveniente, comentar, diz Lya Luft no início de seu texto, mas será que essa atitude deve restringir-se aos colunistas ou estender-se a qualquer pessoa consciente?
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