terça-feira, 6 de março de 2012

Reflexões provocadas por "A fábula dos porcos assados"

A fábula dos porcos assados é rica em provocação de reflexões. A primeira delas é quanto à deficiência em algo imprescindível para se viver bem: a capacidade de interpretar o que se vê, ouve e lê. Foi por não saber interpretar corretamente que os homens daquela região onde ocorreu um incêndio  no bosque entenderam que para comer porco assado e torresmo é necessário incendiar um bosque inteiro. E como interpretações erradas levam, inevitavelmente, a "soluções" (os problemas de hoje provêm das "soluções" de ontem), aqueles homens da fábula desenvolveram um verdadeiro disparate. Saber interpretar é tão importante que entre as ilustrações do meu blog a primeira é a seguinte frase de Ariston Santana Teles.
“Melhor vive quem melhor conhece; e melhor conhece quem melhor interpreta. Daí a necessidade de esforços cada vez maiores na iluminação do raciocínio.”
Outra reflexão provocada pela fábula é sobre o fascínio da maioria pela "arte" da complicação. No mundo corporativo tal fascínio toca as raias do absurdo e, em algum momento, merecerá uma postagem neste blog. Para o simples assamento de porcos foi montado um aparato técnico, científico e administrativo monumental que foi crescendo assustadoramente passando a envolver milhões de pessoas. Surgiram especialistas de todos os tipos possíveis e imagináveis. Os cargos foram surgindo sem parar: diretor disso e daquilo, além de centenas de cargos de chefia e sub-chefia. Cientistas foram trazidos do exterior. Poderíamos ficar dezenas de anos seguidos descrevendo o faraônico aparato instituído para coordenar, implementar, controlar e manter todo o gigantesco processo, diz a fábula. Toda essa complicação para o simples assamento de porcos!
Mas apesar da enorme soma de recursos investidos no funcionamento deste gigantesco aparato, no processo de assamento os animais ficavam, ou parcialmente crus, ou demasiadamente tostados, desagradando milhões de paladares cada vez mais refinados. Então, foram aumentando os protestos e as mobilizações da comunidade tornando consensual a necessidade urgente de reforma no modelo de assamento de porcos.
E numa demonstração de que o fascínio pela complicação não tem limites, congressos, seminários e conferências passaram a ser realizados na busca de uma solução para o problema. Apesar do extraordinário esforço empreendido por milhares de especialistas em assamento de porcos, inclusive com títulos de doutor obtidos no exterior, os resultados alcançados eram desanimadores. Repetiam-se, assim, os congressos, seminários e conferências. Os especialistas continuaram insistindo que as causas do mau funcionamento do sistema eram a indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam ficar no momento do incêndio do bosque; a natureza indomável do fogo e dos ventos etc. O que eles jamais admitiram é que as causas do mau funcionamento do sistema eram oriundas de uma "solução" dada a partir de uma interpretação equivocada.
Até que, certo dia, João Bom-Senso, um incendiador categoria C, nível 4, classe INC, percebeu que o problema era de fácil solução. Então, tendo sido informado sobre as idéias subversivas deste perigoso funcionário, o diretor geral de assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e, depois de ouvi-lo pacientemente, entre outras coisas, questionou-o sobre o que ele faria com aquela complexa estrutura montada com uma imensa variedade de profissionais, com a finalidade de "solucionar" o problema, se a sua ideia simples e subversiva o solucionasse?
E perguntou-lhe também: O senhor percebe que a sua “maravilhosa” idéia pode desencadear uma crise de proporções catastróficas no país? O senhor não vê que se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito, muito, tempo atrás? E acrescentou: O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os milhares de técnicos, engenheiros e pesquisadores com PhD e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas, para assar porcos, e bye-bye para todos vocês! E tal comportamento do diretor geral me faz lembrar uma afirmação de Laurence J. Peter.
“Em minha busca da verdade, tenho envidado esforços para compreender as misteriosas razões pelas quais tantas coisas saem erradas, embora raramente eu consiga distinguir se uma clara manifestação de incompetência resulta do sincero esforço de um dedicado pateta ou do embuste de um espertalhão".
E após fazer várias perguntas que, temerariamente, foram respondidas com "não sei", o diretor geral acrescentou: Viu? O senhor não sabe de nada! (...) Temos que caminhar muito ainda para aperfeiçoar o sistema, o senhor me entende? O que precisamos, acima de tudo, é de sensatez e não de belas intenções! (...) O problema é bem mais sério e complexo do que o senhor jamais poderia imaginar.
João Bom-Senso não falou mais um a. Meio atordoado, meio assustado, envergonhado por ter transmitido a sua estúpida idéia ao diretor geral, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu. Os boatos se espalharam e tornou-se hábito dizer em reuniões de Reforma do Sistema, em tom de chacota, de forma cínica até, que falta Bom-Senso.
A fábula é muito bem escrita, mas a leitura do trecho final requer atenção redobrada, pois pode levar, justamente, ao primeiro equívoco por ela denunciado: as interpretações equivocadas. Vejam o que o diz o diretor geral a João Bom Senso: O que precisamos, acima de tudo, é de sensatez (...). Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia espalhando por aí a sua insensata idéia. (...) recomendo que não insista nessa sua idéia boba pois isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo.
O diretor geral diz a João Bom Senso que o que é preciso, acima de tudo, é sensatez e sugere que ele não saia espalhando por aí sua insensata ideia. E a fábula termina dizendo que João Bom Senso nunca mais foi visto e que tornou-se hábito dizer em reuniões de Reforma do Sistema, em tom de chacota, de forma cínica até, que falta Bom Senso. Nossa! Que confusão! A ideia de João Bom Senso foi considerada insensata por um diretor que diz que o que se precisa é de sensatez; João Bom Senso desapareceu e em reuniões de Reforma de Sistema passou a ser dito que o que falta é bom senso! Que tal buscar nos dicionários o significado dos conceitos envolvidos nesta confusão?
O que significa sensatez? Qualidade de sensato; bom senso. E bom senso, o que é? Capacidade de julgar e de resolver problemas conforme o senso comum. Mas o que significa senso comum? Conjunto de opiniões e modos de sentir que, por serem impostos pela tradição aos indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são geralmente aceitos de modo acrítico como verdades e comportamentos próprios da natureza humana.
Ou seja, ser sensato é ter capacidade de resolver problemas conforme o conjunto de opiniões e modos de sentir que, por serem impostos pela tradição aos indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são geralmente aceitos de modo acrítico como verdades e comportamentos próprios da natureza humana. Portanto, em conformidade com os significados apresentados acima, chego às seguintes conclusões:
1. O que existe em reuniões de Reforma de Sistema, e em reuniões corporativas de modo geral, é abundância e não falta de bom senso, pois o que nelas ocorre é a adesão a opiniões aceitas de modo acrítico como verdades por serem vendidas como sendo as "melhores práticas";
2. No mundo corporativo, é comum classificar-se profissionais de maneira equivocada. Um funcionário insensato pode ser chamado de João Bom Senso e quem obedece toda e qualquer ordem de superiores hierárquicos, sem qualquer contestação, pode ser chamado de líder;
3. Aqueles que, por serem insensatos, sejam capazes de, realmente, solucionar problemas são intimidados por aqueles que, por terem bom senso, alcancem posições de chefia e, sendo assim, acabam desaparecendo ou, por questão de sobrevivência, passando para o lado dos sensatos;
4. A verdadeira falta no mundo corporativo é a de profissionais que se disponham a contestar o que consultores, e enganadores de modo geral, vendem como sendo as "melhores práticas". E que se disponham a pensar com a própria cabeça para identificar os verdadeiros problemas, pois só assim é possível encontrar algo que faça jus a denominação de solução.
Realmente, esta fábula dá o que pensar! E o que escrever!

5 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto. Excelente! Gostei muito das partes que que você fala da nossa deficiência na capacidade de interpretar o que está ao nosso redor e no nosso fascínio pela arte da complicação. Realmente são características muito presentes em nós.
Contudo, discordo da parte final em que você coloca bom senso e senso comum como sendo a mesma coisa.
O bom senso é, por vezes, confundido com a ideia de senso comum, sendo no entanto, muitas vezes o seu oposto. Ao passo que o senso comum pode refletir muitas vezes uma opinião por vezes errônea e preconceituosa sobre determinado objeto, o bom senso é ligado à ideia de sensatez que, por sua vez, é uma capacidade intuitiva de distinguir a melhor conduta em situações específicas.
Nem sempre uma opinião de bom senso é de senso comum. Aliás, penso que na maioria das vezes é o oposto. Costuma-se dizer que a maioria é burra e, não raro, é o que verificamos; uma ideia de senso comum, compartilhada por muitos, mas sem demonstração de reflexão. Quem olha de fora, analisa e reflete sobre tal situação, é capaz de chegar a uma opinião de bom senso e diferente da exposta pela maioria.
Abraço e continue escrevendo. Repito que gostei muito da sua forma de pensar e transmitir as ideias. Parabéns!
PS: tentei postar com meu perfil do google, mas deu erro. Não gosto de fazer postagens anônimas, mas não tive alternativa.

Guedes disse...

Obrigado pelas palavras elogiosas e estimuladoras, e pela disposição para comentar a postagem.

Sobre a parte da qual você discorda, faço o seguinte esclarecimento. Segundo o dicionário, bom senso é a “Aplicação correta da razão para julgar ou raciocinar em cada caso particular da vida”. E senso comum é o “Conjunto de opiniões e modos de sentir que, por serem impostos pela tradição aos indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são geralmente aceitos de modo acrítico como verdades e comportamentos próprios da natureza humana”.

Ou seja, bom senso e senso comum, realmente, não são a mesma coisa, porém, como você diz em seu comentário “O bom senso é, por vezes, confundido com a ideia de senso comum”. A diferença é que onde você diz “por vezes”, eu diria “na maioria das vezes”, e é aí que, no meu entender, é originada a sua discordância em relação à parte final do que escrevi, mas o fato é que a rigor, ou seja, se nenhuma confusão for feita, a sua opinião é a correta, e não a minha.

Seu comentário é excelente e concordo plenamente com o que você diz no seguinte parágrafo:

“Nem sempre uma opinião de bom senso é de senso comum. Aliás, penso que na maioria das vezes é o oposto. Costuma-se dizer que a maioria é burra e, não raro, é o que verificamos; uma ideia de senso comum, compartilhada por muitos, mas sem demonstração de reflexão. Quem olha de fora, analisa e reflete sobre tal situação, é capaz de chegar a uma opinião de bom senso e diferente da exposta pela maioria.”

São coisas de uma sociedade que concede espaço para algo denominado formadores de opinião e que legitima comportamentos sob o pretexto de sua adoção pela maioria. Em uma sociedade onde as pessoas justificam suas ações alegando estar fazendo o que todo mundo faz, a consequência natural é ocorrer, exatamente, o que você diz no parágrafo acima.

Portanto, em termos de significado, não vejo como discordar da sua discordância em relação à parte final da minha postagem e, sendo assim, termino esta resposta agradecendo-lhe pela atenção dada à minha postagem e por ter me alertado sobre o meu equívoco.

Abraço e continue comentando as postagens. Gostei muito de receber o seu comentário. A troca de ideias e as correções de equívocos ajudam bastante a nossa evolução como seres humanos.

PS: Espero que no próximo comentário você consiga fazê-lo com o seu perfil, mas se não conseguir faça-o mesmo como anônimo (a), pois comentários como esse que você fez não devem deixar de ser feitos.

Anônimo disse...

Nos dias atuais nas empresas de que forma você vê essas ideias sendo descartadas pelas gerências sem ao menos tentar ouvir os profissionais que dão sugestões muitas vezes simples porém que podem trazer grandes retornos para as empresas?

Anônimo disse...

Gente!!!

Lendo este texto e suas considerações, não pude deixar defazer um comparativo com o sitema de segurança publica atual.
O Sr. Bom senso nunca conseguirá explicar o que fazer com os secretariis de segurança publica, com os desnecessários Delegados de classesc especiais e tantas e inuteis outras classes, com os fantoches comandantes gerais das policias militares e os milhares e desnecessarios coronéis pm, bem como a infinidade de ten coroneis e majores, com suas chefias, subchefias, coordenadorias e tantas outras denominações.

A culpa nunca será do sistema arcaico e falido e sim dos cidadãos que não sabem escolher os seus representantes, ou a indisciplina dos infratores das também arcaicas leis e seus pesados e inutéis sistema judicial.
Que pena!
Nós o povo, o contribuinte que sustentam9s esses parasitas, estamos num mato sem cachorros.
Só com os porcos.