quinta-feira, 29 de março de 2012

A arte da complicação

Nas Reflexões provocadas por "A fábula dos porcos assados", foi prometido que em algum momento este blog publicaria uma postagem focalizando o fascínio dos atores e atrizes do teatro corporativo pela arte da complicação. Pois é, tal momento chegou mais rápido do que eu imaginara. As três postagens mais recentes levaram-me a redigir esta.
Tendo passado toda a minha vida profissional no teatro corporativo, confesso que nunca vi alguma tarefa que - originalmente - seja de difícil execução para um profissional dotado de um QI, digamos, mediano e que tenha sido adequadamente preparado para executá-la. Sim, originalmente, não existem tarefas difíceis, mas depois de passar pelas mãos de responsáveis pela direção de tal teatro, ou de quem pretende ser um deles, já não se pode dizer o mesmo. É impressionante o fascínio desses profissionais pela arte da complicação. Depois de passar por eles qualquer coisa torna-se complicada. É óbvio que os apreciadores dessa arte contestam o que foi dito acima. Então, creio que uma maneira de defender o que eu disse seja recorrer a alguns fatos. Afinal, como diz um velho ditado, contra fatos não há argumentos.
Após a realização de uma auditoria externa dos processos usados pela TI (Tecnologia da Informação), uma colega que fora escolhida para ser inquirida pelo auditor disse-me que ele lhe fizera a seguinte pergunta: Como é que vocês criam uma coisa tão complicada para vocês mesmos usarem? A pergunta do auditor me fez lembrar um trecho de uma antiga música da Legião Urbana intitulada "Será?": "Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação". Monstros criados, pelo fascínio pela arte da complicação.
Em um encontro de coordenadores de patrimônio, ouvi, de um dos responsáveis pela elaboração de normas e procedimentos, algo mais ou menos assim: A área A trabalha de um jeito e a área B de outro. Então, a solução foi criar uma norma híbrida e deixar que cada um use a que quiser. Gargalhada geral na platéia e garantia de um aumento na complicação do Manual Financeiro. Aliás, se cada um pode usar o que quiser será que é necessário existir uma área de normas e procedimentos?
Em uma reunião setorial, ouvi, estupefato, a seguinte explicação dada a chefe por um colega. "O problema ainda não estava entendido, mas como, pelo cronograma, já deveríamos estar desenvolvendo a solução, partimos para a solução." Sim, eles partiram para a solução e algum dia teriam que partir sei lá para o que para enfrentar a complicação gerada pela estúpida decisão e tentar corrigir a "solução" desenvolvida.
E sobre reuniões e palestras, o que dizer? Qualquer um que já tenha participado de algumas delas, e que tenha um mínimo de capacidade de observação, sabe que elas são verdadeiros shows da arte da complicação. Infelizmente, no teatro corporativo é muito grande a quantidade de profissionais que fala não para ser entendido e sim para se exibir. E como isso é feito? Falando de maneira complicada para tentar passar a quem ouve a sensação de estar diante de alguém mais inteligente que a platéia, pois diz coisas que esta não consegue entender. "Pai, perdoai-os ... eles não sabem o que fazem". Mas se eles não sabem o que fazem, nós precisamos saber enxergar o que está diante de nós. Não, não é alguém dotado de inteligência muito superior a nossa e sim um adepto da arte da complicação. E, na maioria das vezes, também um praticante de outra arte: a da embromação. É bastante comum, no teatro corporativo, encontrar atores e atrizes chegados à prática de várias artes.
No estranho teatro corporativo, ser responsável por coisas complicadas confere aos culpados, digo, aos responsáveis, importância e status. Sendo assim, nada mais “natural” que tentar complicar o que estiver ao seu alcance, não é mesmo? E a complicação pode chegar a tal grau que a "solução" seja contratar algum consultor capaz de "solucionar" os problemas agravados por ela. Ou seja, foi da prática da arte da complicação que surgiu a profissão de consultor. Vocês concordam com esta afirmação? É óbvio que opiniões de consultores são consideradas suspeitas. Aliás, é sobre este tipo de atores que falarei na próxima postagem. Nesta eu faço apenas uma pergunta. Dá para acreditar que um profissional oriundo da prática da arte da complicação e que dela vive queira acabar com ela?
Durante 3,5 décadas das 3,7 em que atuei no teatro corporativo, trabalhei como analista de sistemas. E durante a maior parte desse tempo o desenvolvimento de sistemas envolvia três tipos de atores: os usuários (responsáveis pelo problema), os analistas de sistemas (responsáveis por encontrar uma solução para o problema) e os programadores (responsáveis pela codificação da solução). Mas ao aposentar-me (em outubro de 2010) o desenvolvimento de coisas que eu nem denominaria sistemas já envolvia, no mínimo, os seguintes tipos de atores: usuários, líderes de projeto, líderes de produto, programadores, gerentes de projeto, mentores, "PMO"s (Project Management Office) e "P"s sei lá o que. Todos eles adversários entre si e prontos para colocar a culpa uns nos outros em caso de fracasso. Fracasso que não é difícil de ocorrer devido à facilidade que todos eles têm para complicar o entendimento do problema a ser resolvido. Afinal, eles têm a pretensão de entendê-lo usando, exatamente, um meio de comunicação que é um dos pontos fracos da maioria: a comunicação escrita e formal. É impressionante a quantidade de documentos gerados por eles, em um verdadeiro fenômeno de propagação de mal-entendidos! Vai gostar de complicação assim vocês sabem onde!
Com a esperança de que esta postagem tenha sido redigida em uma linguagem que possibilite a todos entender o que eu disse, e com a intenção de evitar maiores complicações, termino-a com um trecho da postagem na qual esta foi prometida.
“Para o simples assamento de porcos foi montado um aparato técnico, científico e administrativo monumental que foi crescendo assustadoramente passando a envolver milhões de pessoas. Surgiram especialistas de todos os tipos possíveis e imagináveis. Os cargos foram surgindo sem parar: diretor disso e daquilo, além de centenas de cargos de chefia e sub-chefia. Cientistas foram trazidos do exterior. Poderíamos ficar dezenas de anos seguidos descrevendo o faraônico aparato instituído para coordenar, implementar, controlar e manter todo o gigantesco processo, diz a fábula. Toda essa complicação para o simples assamento de porcos.”
Bem, esta é a minha visão do fascínio do teatro corporativo pela arte da complicação. Mas como já foi dito em uma postagem deste blog, todo ponto de vista é a vista de um ponto. Portanto, se alguém tiver uma visão diferente solicito que a divulgue. De preferência, com uma argumentação consistente e / ou com fatos.

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