quarta-feira, 27 de julho de 2011

Revisitando Rousseau

Revisitando uma pasta de textos interessantes, encontrei um de Carolina DaCosta, doutoranda em educação na Rutgers University (New Jersey, EUA), que julguei conveniente publicar neste blog. Ele tem muito a ver com as seguintes postagens: Entrevista com a criadora do Calendário das Virtudes, Era uma vez uma infância e A meta é a felicidade. Portanto, se for possível, revisitem tais postagens e confiram. Revisitar bons textos é bastante saudável, pois aumenta a probabilidade de aceitarmos ideias neles contidas e, consequentemente, as incorporarmos ao nosso comportamento.
Revisitando Rousseau
“Como é de praxe na história do conhecimento humano, grandes idéias e teorias geralmente se perdem no mau uso que se faz delas. Quando Piaget desenvolveu sua brilhante teoria dos estágios cognitivos, sua intenção não era a de estabelecer com qual idade as crianças deveriam pensar ou fazer o quê, mas sim pontuar limites do nosso desenvolvimento cognitivo que deveriam ser levados em conta durante o aprendizado. Ao professor, caberia então adaptar atividades e linguagem de maneira a respeitar tais limites. Porém, o uso inadequado de suas idéias perpetuou uma visão errônea na comunidade escolar de que seria possível ‘acelerar’ tais estágios cognitivos. Visão à qual Piaget já na década de 70 referia-se, ressentido, como ‘febre da América’.
Nessa linha, substituiu-se o tempo necessário ao desenvolvimento psíquico, emocional e social da criança, por aulas de computação, cálculo, idiomas, piano, etc, na ânsia de se criar um exército de crianças prodígios. É comum vermos pais gabarem-se que seus filhos falam inglês ou que tocam piano ou que até lêem e escrevem ainda no jardim. Claro que da ausência de limites, de respeito à autoridade e ao próximo ninguém comenta, afinal são ‘apenas crianças.’ Além disso, cumprimentar, olhar nos olhos quando alguém fala, respeitar um ponto de vista divergente, ou simplesmente saber ouvir tornou-se caretice.
Quando muita ênfase se é dada ao racional e pouca ao emocional e social da criança, o que se observa não é um processo de prodigiosidade, mas de alienação moral e social cada vez maiores. Pouco espaço nos currículos escolares é dado à formação de valores, caráter e, principalmente, consciência crítica e social. Daí explica-se o alto índice de violência escolar (como o bullying) e de apatia política e social que se observa nas escolas. Eu mesma presenciei em um dos meus trabalhos em escolas públicas de New Jersey, uma criança de seus 6-7 anos defender avidamente o porquê que ele tinha razão em ter quebrado uma garrafa na cabeça do coleguinha. Casos similares a esse são parte constante do dia-a-dia das escolas.
Num momento de crise aguda de valores, em que cada vez mais observa-se a terceirização da educação dos nossos filhos às escolas e uma preocupação cada vez menor destas em lidar com assuntos controversos (como formação de valores e consciência crítica - afinal isso não é pedido em vestibular), eu pergunto quando nós educadores iremos assumir essa necessidade? Dizer que não é problema nosso é ignorar um fato inevitável: é na escola, na sala de aula, no recreio, que os indivíduos vivenciam suas primeiras questões éticas. Não faltam críticas a modelos reacionários como ‘educação moral e cívica’. Só que esquecemos um pequeno detalhe: colocar outro modelo melhor no lugar. A começar da necessidade do tema, faltam discussões pragmáticas a cerca de como abordá-lo, de quem irá ensinar, quais valores éticos e onde?
Hoje presenciamos uma total apatia política da nossa população diante dos escândalos éticos do governo. Vemos nossas crianças crescerem almejando trabalhos fáceis e de alto retorno financeiro, considerando ‘otário’ quem trabalhe duro ou por idealismo. Aceitamos passivamente atos diários de falta de cidadania. Assistimos à televisão exaltar modelos de conduta altamente questionáveis. Buscamos justificativas para atos desonestos, do tipo ‘todo mundo rouba mesmo’ ou ‘não serei eu o trouxa’, entre outros. Somos crias de um pós-modernismo mal interpretado, utilizado como instrumento para aceitação de qualquer ponto de vista, desde que bem calçado retoricamente. Assim, os conceitos de certo e errado confundem-se cada vez mais. Há quase 300 anos, no seu livro Emile, Rousseau já nos alertava do perigo de se ensinar conhecimento antes do caráter. Serão criados cínicos, não cidadãos, dizia ele, que se utilizarão da razão e da retórica para justificar suas patifarias. Rousseau nunca esteve tão atual.”

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