A vontade de redigir este texto foi despertada por uma gravação encontrada no correio de voz do telefone localizado na “estação de trabalho” que eu ocupava. Ela foi deixada na noite de 12.10.2002, um sábado, e só a ouvi na segunda-feira. Fiquei tão impressionado com a mensagem que resolvi copiar aquelas palavras. Creio que elas possibilitem reflexões sobre uma necessidade humana tão negligenciada: conversar.
“Oi. Olha só. Eu estou aqui sozinha sabe e queria conversar com alguém e involuntariamente eu liguei pra você, mas nem você quer falar comigo. Tá bom, tudo bem, fazer o que. Beijinho.”
A voz era de uma jovem que, em uma numa noite de sábado, estava sozinha e involuntariamente ligara para alguém porque queria conversar. Mas em vez de encontrar alguém com quem conversar o que ela conseguiu foi ouvir o correio de voz repetir a seguinte saudação: “Se a intenção era ligar para 9999-9999 você acertou o número, mas errou o momento. Se julgar conveniente, grave uma mensagem após o sinal”. Apesar da ligação não ter sido intencional aquela saudação era válida: ela ligara no momento errado. Ligara para uma empresa em um dia em que a maior parte de sua “força de trabalho” ainda tem direito a um descanso. Involuntariamente eu a decepcionara: afinal, nem eu quis falar com ela. Foi uma pena, pois adoro conversar. No meu entender, conversar é uma necessidade humana. Concordo com algo que li no livro O Retorno e Terno de Rubem Alves.
“(...) Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar’.”
Creio que a capacidade de conversar com prazer deve ser objeto de interesse não apenas no relacionamento entre casais, mas em qualquer relacionamento. Vimala Thakar escreveu um livro intitulado Viver é relacionar-se e Rubem Alves diz que relações não transitórias são construídas sobre a arte de conversar. Mas na sociedade em que vivemos a preferência é justamente pelas relações transitórias; por aquelas que não se prendem a nada nem a ninguém. É de um antigo texto que circulou pela internet e atribuído a Arnaldo Jabor o seguinte trecho:
“Na hora de cantar todo mundo enche o peito nas boates, levanta os braços, sorri e dispara: ‘eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também’.”No entanto, passado o efeito do uísque com energético e dos beijos descompromissados, os adeptos da geração ‘tribalista’ se dirigem aos consultórios terapêuticos, ou alugam os ouvidos do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição.”
Sim, é somente após passar o efeito de coisas que esta sociedade doente oferece para que as pessoas, transitoriamente, esqueçam a realidade em que sobrevivem e “curtam” estados artificiais de euforia (que muitos confundem com alegria) que elas percebem a solidão em que vivem (embora cercadas de pessoas) e dirigem-se aos consultórios terapêuticos, ou alugam os ouvidos do amigo mais próximo e reclamam de solidão, ausência de interesse das pessoas, descaso e rejeição. É neste momento que vem à tona a necessidade de conversar, porém junto com ela vêem dificuldades para satisfazer tal necessidade, pois conversar é confundido com falar.
Conversar depende de tempo para dar atenção ao que outra pessoa fala, mas isto é algo cada dia mais difícil em uma sociedade na qual a maioria faz parte do MST: Movimento dos Sem Tempo. Considerando insuficiente o tempo de que dispõe, a maioria opta por fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e como diz Daniel Piza, nenhuma com a devida consistência. Uma delas é falar com alguém enquanto faz outra coisa. Sem dar atenção ao que o outro fala as pessoas respondem falando o que “mal” entendem e, equivocadamente, acham que estão conversando.
Que conversar e falar não são a mesma coisa pode ser entendido até musicalmente. É da música Same Mistake interpretada por James Blunt o seguinte trecho:
“And maybe someday we will meetE talvez um dia nós nos encontremosAnd maybe talk and not just speakE talvez possamos conversar e não apenas falar”
Mas enquanto não pudermos conversar e apenas falar, persistirá o fracasso nos verdadeiros relacionamentos. E, consequentemente, prosseguiremos vivendo mal, pois se viver é relacionar-se jamais viveremos bem enquanto nos relacionarmos mal. E pouco adianta criar meios de comunicação se nós não abandonarmos a superficialidade e a futilidade de nossos relacionamentos. Meios de comunicação não nos faltam, creio até que existem demais, o que nos falta é saber usá-los com algo que preste. Repito aqui um trecho do texto de Luiza Possi que postei em 30 de março.
“Acho que é mais fácil dizer para muita gente ao mesmo tempo que você está entrando no carro e indo ao supermercado do que sentar com um amigo e falar do que realmente nos faz bem, e do que nos faz mal. O conceito de se relacionar está mudando, não sabemos ainda muito bem para onde.”
Sim, o conceito de se relacionar está mudando e as redes sociais estão aí fazendo um estrondoso sucesso. Tão estrondoso que parece impedir as pessoas de ouvir sua voz interior alertando que relacionamentos superficiais jamais resolverão o problema da solidão que a cada dia é mais profunda.
Viver é relacionar-se e conversar é uma necessidade. Estamos conversados?
8 comentários:
Excelente texto.
Realmente estamos vivendo em uma sociedade solitária.
O imediatismo e os prazeres lúdicos são as referências e as "necessidades" do homem.
Aprofundar conversas, relacionar tem se tornado cada vez mais escasso.
Quem desenvolve a arte de conversar tem sorte na vida!
Um grande abraço.
Oi Nathy,
Seja bem-vinda a este blog. Espero que continue encontrando nele textos que sejam de seu agrado e que continue comentando-os. Talvez seja conveniente lembrar que os comentários não devem se restringir a concordar com o que é dito nos textos, mas abrangem também discordâncias bem intencionadas que ajudem a ver as coisas de outros pontos de vista.
Um abraço,
Guedes
Guedes,
Infelizmente hoje muitas pessoas não contam mais seus segredos, medos e vitórias nem para seus melhores amigos. A preferência é pagar um "personal friend"(psicólogo) para conversar. Os nossos melhores amigos só vivem atendendo telefone, recebeno mensagens, trabalhando muito para ter de material o que a sociedade cobra e etc... Tudo bem que não queiram ouvir nossas mágoas, mas o maior absurdo é não ter tempo para comemorar nem ouvir as nossas vitórias!
Bom dia, amigos
Muito bom, pena que a maioria nem fale mais, so emita sons, girias e outra coisa paralela, até propaganda de televisão incentiva a não falar mais e sim baixar programas e comunicar, esta faltando o olho no olho e conversa franca e aberta
Alguém mais tem dificuldades de acompanhar séries e novelas?
Esse texto me lembrou o fato de que não consigo mais acompanhar estes programas televisivos. Os diálogos são tão rápidos e superficiais, mudando de um cenário para o outro, que eu fico tonto.
Uma cena irritante (e comum) é de um membro da família, no meio da discussão, que diz uma frase de efeito e dá as costas, como se tudo tivesse sido esclarecido com aquela frase. Como se ele tivesse conseguido aniquilar o problema de uma forma extremamente objetiva.
Será que os telespectadores não tem mais paciência nem para acompanhar um diálogo um pouco mais profundo?
Será a vida imitando a arte? Ou influenciando-a...
Lucimila,
"Infelizmente hoje muitas pessoas não contam mais seus segredos, medos e vitórias nem para seus melhores amigos. A preferência é pagar um 'personal friend' (psicólogo) para conversar."
É com essas duas frases que você inicia seu comentário. Frases com as quais só não concordo plenamente devido a você ter dito que as pessoas agem assim por preferência. Afinal, preferência significa escolha entre duas ou mais opções, mas não é isso que ocorre no assunto em questão.
No meu entender, o fato de as pessoas se disporem a pagar para conversar deve-se, exatamente, à inexistência de quem se disponha a ouvi-las gratuitamente, pois conversar significa ouvir e falar – necessariamente nesta ordem -, e na sociedade em que sobrevivemos, a maioria apenas fala. E como fala! Para defender a afirmação que acabo de fazer, recorro ao insano uso dessa coisa chamada rede social. Algo que está mais para rede do que para social, pois, efetivamente, o que ela faz é enredar as pessoas a tal ponto que elas acabam ficando sem tempo para o autêntico social.
"Os nossos melhores amigos só vivem atendendo telefone, recebendo mensagens, trabalhando muito para ter de material o que a sociedade cobra e etc... Tudo bem que não queiram ouvir nossas mágoas, mas o maior absurdo é não ter tempo para comemorar nem ouvir as nossas vitórias!"
É com essas duas frases que você termina o seu comentário, e é com base nelas que termino minha resposta ao seu comentário. Sim, cada vez mais nossos melhores amigos têm menos tempo para interagir conosco. Você diz que o maior absurdo é não terem tempo para comemorar nem ouvir as nossas vitórias e eu cito, a seguir, outra coisa que me parece absurda.
Em outros tempos, no dia do aniversário de um amigo, encontrávamo-nos com ele para, pessoalmente, dar-lhe um afetuoso abraço. O tempo passou e o abraço foi substituído por um telefonema. Ou seja, deixamos de ver o amigo e passamos a apenas ouvir sua voz através de um aparelho telefônico. O tempo continuou passando, deixamos de ouvir a voz do amigo e passamos a apenas enviar uma mensagem SMS. Conseqüências inevitáveis da evolução, diz a maioria. Maioria a qual eu não pertenço. Para mim, a "evolução" do antigo e afetuoso abraço ao vivo para as modernas mensagens SMS é uma verdadeira demonstração de quanto o grau de importância das amizades tem diminuído ao longo do tempo. A facilidade com que, cada vez mais, se substitui um possível esforço para participar de um encontro ao vivo pelo simples envio de uma mensagem SMS leva-me leva a traduzir SMS por Sem Muito Significado. Ficam excluídos desta opinião os casos de amigos distanciados geograficamente. Ou seja, aqueles situados em cidades, estados e países diferentes.
Nilo,
O problema nem é o falar, mas sim o conversar, pois conversar é ouvir e falar – necessariamente nesta ordem – e cada vez mais a deficiência das pessoas é de ouvir. Ouvir com atenção e só então falar. Falar em conformidade com o que se ouve, de maneira franca e aberta e, de preferência, olhando nos olhos do interlocutor, conforme você diz.
Wladimir,
Minhas dificuldades para acompanhar séries e novelas começam pelos temas que, geralmente, não me interessam. Quanto à rapidez e a superficialidade dos diálogos, vejo-a, simplesmente, como a mesma adotada pela maioria desta sociedade que optou por viver em ritmo de vídeo clip.
Não, não só como telespectadores, mas também na condição de participantes de diálogos, a maioria das pessoas não tem mais paciência para algo um pouco mais profundo. Para os poucos que conseguem livrar-se dela, a superficialidade que assola esta civilização é assustadora. E é em pleno exercício de tal superficialidade que, conforme você diz, as pessoas "pronunciam uma frase de efeito e dão as costas como se tudo tivesse sido esclarecido com aquela frase" que, efetivamente, não produzirá "efeito" algum.
"Será a vida imitando a arte? Ou influenciando-a...", indaga você.
"Será que quaisquer duas coisas que interagem entre si podem fazê-lo sem influenciarem-se reciprocamente?", pergunto eu. Qual delas exerce maior influência, creio que seja algo questionável, mas quanto à reciprocidade da influência, creio que não cabe qualquer dúvida.
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