segunda-feira, 28 de março de 2011

O paradoxo andante

Esta postagem apresenta parte de um texto do brilhante escritor uruguaio Eduardo Galeano, publicado em 09.01.2008.

O paradoxo andante

“Cada dia, lendo os jornais, assisto a uma aula de história. Os jornais ensinam-me pelo que dizem e pelo que calam. A história é um paradoxo andante. A contradição move-lhe as pernas. Talvez por isso os seus silêncios digam mais que as suas palavras e com frequência suas palavras revelam, mentindo, a verdade.

Dentro em breve será publicado um livro meu que se chama Espelhos. É algo assim como uma história universal, e perdão pelo atrevimento. ‘Eu posso resistir a tudo, menos à tentação’, dizia Oscar Wilde, e confesso que sucumbi à tentação de contar alguns episódios da aventura humana no mundo, do ponto de vista dos que não apareceram na foto. Pode-se dizer de alguma maneira, tratar-se de fatos não muito conhecidos. Aqui resumo alguns, apenas uns poucos.

John Locke, o filósofo da liberdade, era acionista da Royal Africa Company, que comprava e vendia escravos.

Nomes de alguns navios negreiros: Voltaire, Rousseau, Jesus, Esperança, Igualdade, Amizade.

Em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, a Revolução Francesa proclamou, em 1973 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Então, a militante revolucionária Olympia de Gouges propôs a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. A guilhotina cortou-lhe a cabeça.

Meio século depois, outro governo revolucionário, durante a Primeira Comuna de Paris, proclamou o sufrágio universal. Ao mesmo tempo, negou o direito de voto às mulheres, por unanimidade menos um: 899 votos contra, um a favor.

A imperatriz cristã Teodora nunca disse ser uma revolucionária, nem algo parecido. Mas há mil e quinhentos anos o império bizantino foi, graças a ela, o primeiro lugar do mundo onde o aborto e o divórcio foram direitos das mulheres.

‘Botinzito’ foi o primeiro cão pequinês que chegou à Europa. Viajou para Londres em 1860. Os ingleses batizaram-no assim porque era parte do botim arrancado à China, ao fim das longas guerras do ópio. Vitória, a rainha narcotraficante, havia imposto o ópio a tiros de canhão. A China foi convertida em uma nação de drogados, em nome da liberdade, a liberdade de comércio.

Em nome da liberdade, a liberdade de comércio, o Paraguai foi aniquilado em 1870. Ao final de uma guerra de cinco anos, este país, o único das Américas que não devia um centavo a ninguém, inaugurou a sua dívida externa. Às suas ruínas fumegantes chegou, vindo de Londres, o primeiro empréstimo. Foi destinado a pagar uma enorme indenização ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai. O país assassinado pagou aos países assassinos pelo trabalho que haviam tido para assassiná-lo.

O Haiti também pagou uma enorme indenização. Desde que em 1804 conquistou sua independência, a nova nação arrasada teve de pagar à França uma fortuna, durante um século e meio, para expiar o pecado da sua liberdade.

As grandes empresas têm direitos humanos nos Estados Unidos. Em 1886, a Suprema Corte de Justiça estendeu os direitos humanos às corporações privadas, e assim continua sendo. Poucos anos depois, em defesa dos direitos humanos das suas empresas, os Estados Unidos invadiram dez países, em diversos mares do mundo. Então, Mark Twain, dirigente da Liga Anti-Imperialista, propôs uma nova bandeira, com caveirinhas no lugar das estrelas, e outro escritor, Ambroce Bierce, confirmou:
- A guerra é o caminho que Deus escolheu para nos ensinar geografia.

Em 1953, explodiu o protesto operário na Alemanha comunista. Trabalhadores tomaram as ruas e os tanques soviéticos se ocuparam de calar-lhes a boca. Então Bertolt Brecht sugeriu: Não seria mais fácil que o governo dissolvesse o povo e elegesse outro?

Operações de marketing. A opinião pública é o alvo. As guerras vendem-se mentindo, como se vendem os carros. Em 1964, os Estados Unidos invadiram o Vietnam, porque o Vietnam havia atacado dois navios dos Estados Unidos no Golfo de Tonkin. Quando a guerra já tinha trucidado uma multidão de vietnamitas, o ministro da Defesa, Robert McNamara, reconheceu que o ataque de Tonkin não havia existido. Quarenta anos depois, a história repetiu-se no Iraque.

Milhares de anos antes da invasão norte-americana levar a civilização ao Iraque, nessa terra bárbara nasceu o primeiro poema de amor da história mundial. Na língua suméria, escrito no barro, o poema narrou o encontro de uma deusa e um pastor. Inanna, a deusa, amou nessa noite como se fosse mortal. Dumuzi, o pastor, foi imortal enquanto durou essa noite.

Paradoxos andantes, paradoxos estimulantes:

O Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais belas esculturas da era colonial americana.

O livro de viagens de Marco Polo, aventura da liberdade, foi escrito na prisão de Genova.

‘Don Quixote de La Mancha’, outra aventura da liberdade, nasceu na prisão de Sevilha.

Foram netos de escravos os negros que criaram o jazz, a mais livre das músicas.”

Infelizmente, a história da aventura humana registra uma infinidade de atos desumanos. Ações que demonstram sentimentos inferiores. E munido de tais sentimentos, o homem deseja construir máquinas que se assemelhem a ele. Sonha em construir a máquina-humana e não percebe que está cada vez mais próximo do pesadelo de haver se tornado o homem-máquina.

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