domingo, 9 de junho de 2024

Os dilemas éticos da tecnologia (I)

Após o espalhamento de um texto em que seu autor (Douglas Rushkoff) adverte-nos sobre a aceitação da autodestrutiva ideia de que as pessoas são o problema e que a tecnologia é a solução, segue a primeira parte de um texto em que são focalizados os dilemas éticos da tecnologia. Onde o encontrei? Na edição de 09 de fevereiro de 2024 do jornal Valor Econômico em um caderno intitulado EU& publicado na edição de sexta-feira. A divisão em duas partes deve-se à intenção de não afugentar leitores de pouco fôlego e consequentemente evitar que eles sejam privados da leitura de um texto que, na minha insuspeita opinião, considero imperdível.
Os dilemas éticos da tecnologia
Filosofia 'Estamos perdendo oportunidades de autoconhecimento e crescimento pessoal', diz americano Nolan Gertz. Por Claudia Penteado, para o Valor, do Rio
O professor de filosofia e pesquisador americano Nolan Gertz, que leciona na Universidade de Twente, na Holanda, costuma dizer que quando as pessoas olham para o smartphone, não enxergam apenas um objeto, mas um portal para o mundo. Na medida em que oferece respostas sobre o clima, conecta amigos e até "diz verdades" sobre seu usuário (com base em selfies e rastreamento de saúde), o aparelho se torna um modo de fazê-lo enxergar a si próprio e o mundo ao redor.
É aí que as coisas começam a se complicar, porque embora a tecnologia pareça ser essencialmente amoral, apenas uma ferramenta que pode ser usada para o bem e para o mal, quando ela tem a capacidade de moldar como vemos o mundo, passa a ter implicações éticas intrínsecas, que é preciso reconhecer - e abordar. Neste sentido, demanda maior reflexão e pensamento crítico no seu uso - e é justamente aí que entra a filosofia, com seu papel de ajudar a pensar o mundo e a vida.
Fascinado por computação, Gertz se apaixonou por filosofia na graduação em ciências políticas, quando entrou em contato com o pensamento de Joseph Wittgenstein (1889-1951) - filósofo austríaco naturalizado britânico que teve importantes contribuições nos campos da lógica e da filosofia da linguagem. Acabou unindo as duas paixões e se especializou em analisar os impactos da tecnologia na humanidade pelo viés da filosofia.
Na Holanda, Gertz é pesquisador sênior do Centro de Ética e Tecnologia da Universidade de Twente, que fica na cidade de Enschede, na fronteira com a Alemanha. Sua pesquisa se concentra na interseção entre filosofia política, fenomenologia existencial e filosofia da tecnologia. Ele se declara um heavy user de celular e redes sociais e confessa que se inspirou nos próprios maus hábitos e excessos para enxergá-los nos outros.
Em seu livro "Nihilism and Technology" (Niilismo e Tecnologia, 2018), Gertz afirma que a tecnologia exacerba o niilismo do ser humano: ao usar a tecnologia para evitar o tédio, o ser humano evita questionar a razão do seu tédio, e com isso acaba por se afastar de questões muito maiores, como o significado e o propósito da vida.
Gertz chama de niilismo a tentativa de escapar do confronto com a realidade, imaginando "mundos melhores" que a tecnologia poderia tornar possível, como escapar da morte "fazendo upload da consciência para a nuvem", o que ele define como uma versão tecnológica do niilismo religioso, que trata da vida após a morte nas nuvens do céu.
Enquanto a tecnologia nos dá robôs para limpar as casas, drones para entregar pacotes, aplicativos que ajudam a encontrar empregos, carros que dirigem sozinhos e algoritmos que nos dizem o que gostamos e o que deveríamos fazer, nos dá também uma falsa sensação de liberdade, que nos leva a uma inércia, que faz com que não estejamos, como humanidade, pensando e agindo de maneira mais efetiva diante da iminente catástrofe climática, das crises de refugiados e das ameaças fascistas. É uma espécie de desumanização, embora se acredite exatamente no contrário.
"O problema do modelo de design tecnológico 'lazer como libertação' é o defeito que o filósofo Friedrich Nietzsche identificou pela primeira vez há mais de 100 anos como a doença do niilismo. É o abraço do nada, de não se importar, a crença de que nada importa", diz Gertz ao Valor.
Isso faz com que, diante dos problemas que se apresentam, muitas pessoas prefiram simplesmente não pensar a respeito, sentar diante de uma tela e assistir a uma nova temporada de sua série favorita.
"Usar a tecnologia para combater o tédio nos impede de enfrentar e entendê-lo. O tédio não é apenas uma falta de estímulo. É uma oportunidade para reflexão e questionamento sobre nossas vidas e valores. Estamos perdendo oportunidades de autoconhecimento e crescimento pessoal".
O problema é grave e tende a piorar, uma vez que a interação humana com a tecnologia se tornará cada vez mais íntima e onipresente.
"O futuro dessa interação dependerá em grande parte de como escolhemos moldá-la. Podemos projetar tecnologias que promovam a conexão genuína, o crescimento pessoal e o bem-estar coletivo ou podemos permitir que as tecnologias nos manipulem e nos isolem. O futuro da nossa interação com a tecnologia está nas nossas mãos, e é crucial que façamos escolhas conscientes sobre o tipo de futuro que queremos criar", observa.
Para Gertz, a tecnologia tem o potencial de transformar radicalmente a educação, tornando-a mais acessível e personalizada. No entanto, também existe o risco de que ela leve a uma ênfase excessiva em resultados quantificáveis e em aprendizagem superficial, em detrimento do pensamento crítico e da compreensão profunda.
"É crucial que, ao integrar a tecnologia na educação, também consideremos cuidadosamente quais valores queremos promover e como podemos usar a tecnologia para apoiar esses valores."
"É crucial que façamos escolhas conscientes sobre o tipo de futuro que queremos criar"
Para Gertz, a inteligência artificial tem o potencial de revolucionar o trabalho, automatizando tarefas rotineiras e abrindo novas possibilidades para a criatividade humana. No entanto, teme que a crescente automatização da economia leve a desigualdades cada vez maiores e ao desemprego em massa.
Desenhar esse futuro do trabalho mais justo e gratificante para todos é algo que demanda o cuidado proporcionado pelo pensamento crítico, pela reflexão e compreensão profunda dos problemas. Neste sentido, a filosofia se apresenta como um campo vasto e diversificado para pensar a tecnologia, contribuindo com novas perspectivas e insights.
Termina na próxima sexta-feira

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