Após o espalhamento de um texto em
que seu autor (Douglas Rushkoff) adverte-nos sobre a aceitação da
autodestrutiva ideia de que as pessoas são o problema e que a tecnologia é a
solução, segue a primeira parte de um texto em que são focalizados os dilemas éticos
da tecnologia. Onde o encontrei? Na edição de 09 de fevereiro de 2024 do jornal
Valor Econômico em um caderno
intitulado EU& publicado na
edição de sexta-feira. A divisão em duas partes deve-se à intenção de não
afugentar leitores de pouco fôlego e consequentemente evitar que eles sejam
privados da leitura de um texto que, na minha insuspeita opinião, considero imperdível.
Os dilemas éticos da tecnologia
Filosofia 'Estamos perdendo
oportunidades de autoconhecimento e crescimento pessoal', diz americano Nolan
Gertz. Por Claudia Penteado, para o Valor,
do Rio
O
professor de filosofia e pesquisador americano Nolan Gertz, que leciona na
Universidade de Twente, na Holanda, costuma dizer que quando as pessoas olham
para o smartphone, não enxergam apenas um objeto, mas um portal para o mundo.
Na medida em que oferece respostas sobre o clima, conecta amigos e até
"diz verdades" sobre seu usuário (com base em selfies e rastreamento
de saúde), o aparelho se torna um modo de fazê-lo enxergar a si próprio e o
mundo ao redor.
É aí que
as coisas começam a se complicar, porque embora a tecnologia pareça ser
essencialmente amoral, apenas uma ferramenta que pode ser usada para o bem e
para o mal, quando ela tem a capacidade de moldar como vemos o mundo, passa a
ter implicações éticas intrínsecas, que é preciso reconhecer - e abordar. Neste
sentido, demanda maior reflexão e pensamento crítico no seu uso - e é
justamente aí que entra a filosofia, com seu papel de ajudar a pensar o mundo e
a vida.
Fascinado
por computação, Gertz se apaixonou por filosofia na graduação em ciências
políticas, quando entrou em contato com o pensamento de Joseph Wittgenstein
(1889-1951) - filósofo austríaco naturalizado britânico que teve importantes
contribuições nos campos da lógica e da filosofia da linguagem. Acabou unindo
as duas paixões e se especializou em analisar os impactos da tecnologia na
humanidade pelo viés da filosofia.
Na
Holanda, Gertz é pesquisador sênior do Centro de Ética e Tecnologia da
Universidade de Twente, que fica na cidade de Enschede, na fronteira com a
Alemanha. Sua pesquisa se concentra na interseção entre filosofia política,
fenomenologia existencial e filosofia da tecnologia. Ele se declara um heavy
user de celular e redes sociais e confessa que se inspirou nos próprios maus
hábitos e excessos para enxergá-los nos outros.
Em seu
livro "Nihilism and Technology" (Niilismo e Tecnologia, 2018), Gertz
afirma que a tecnologia exacerba o niilismo do ser humano: ao usar a tecnologia
para evitar o tédio, o ser humano evita questionar a razão do seu tédio, e com
isso acaba por se afastar de questões muito maiores, como o significado e o
propósito da vida.
Gertz
chama de niilismo a tentativa de escapar do confronto com a realidade,
imaginando "mundos melhores" que a tecnologia poderia tornar
possível, como escapar da morte "fazendo upload da consciência para a
nuvem", o que ele define como uma versão tecnológica do niilismo
religioso, que trata da vida após a morte nas nuvens do céu.
Enquanto
a tecnologia nos dá robôs para limpar as casas, drones para entregar pacotes,
aplicativos que ajudam a encontrar empregos, carros que dirigem sozinhos e
algoritmos que nos dizem o que gostamos e o que deveríamos fazer, nos dá também
uma falsa sensação de liberdade, que nos leva a uma inércia, que faz com que
não estejamos, como humanidade, pensando e agindo de maneira mais efetiva
diante da iminente catástrofe climática, das crises de refugiados e das ameaças
fascistas. É uma espécie de desumanização, embora se acredite exatamente no
contrário.
"O
problema do modelo de design tecnológico 'lazer como libertação' é o defeito
que o filósofo Friedrich Nietzsche identificou pela primeira vez há mais de 100
anos como a doença do niilismo. É o abraço do nada, de não se importar, a
crença de que nada importa", diz Gertz ao Valor.
Isso faz
com que, diante dos problemas que se apresentam, muitas pessoas prefiram
simplesmente não pensar a respeito, sentar diante de uma tela e assistir a uma
nova temporada de sua série favorita.
"Usar
a tecnologia para combater o tédio nos impede de enfrentar e entendê-lo. O
tédio não é apenas uma falta de estímulo. É uma oportunidade para reflexão e
questionamento sobre nossas vidas e valores. Estamos perdendo oportunidades de
autoconhecimento e crescimento pessoal".
O
problema é grave e tende a piorar, uma vez que a interação humana com a
tecnologia se tornará cada vez mais íntima e onipresente.
"O
futuro dessa interação dependerá em grande parte de como escolhemos moldá-la.
Podemos projetar tecnologias que promovam a conexão genuína, o crescimento
pessoal e o bem-estar coletivo ou podemos permitir que as tecnologias nos
manipulem e nos isolem. O futuro da nossa interação com a tecnologia está nas
nossas mãos, e é crucial que façamos escolhas conscientes sobre o tipo de
futuro que queremos criar", observa.
Para
Gertz, a tecnologia tem o potencial de transformar radicalmente a educação,
tornando-a mais acessível e personalizada. No entanto, também existe o risco de
que ela leve a uma ênfase excessiva em resultados quantificáveis e em
aprendizagem superficial, em detrimento do pensamento crítico e da compreensão
profunda.
"É
crucial que, ao integrar a tecnologia na educação, também consideremos
cuidadosamente quais valores queremos promover e como podemos usar a tecnologia
para apoiar esses valores."
"É crucial que façamos escolhas
conscientes sobre o tipo de futuro que queremos criar"
Para
Gertz, a inteligência artificial tem o potencial de revolucionar o trabalho,
automatizando tarefas rotineiras e abrindo novas possibilidades para a
criatividade humana. No entanto, teme que a crescente automatização da economia
leve a desigualdades cada vez maiores e ao desemprego em massa.
Desenhar
esse futuro do trabalho mais justo e gratificante para todos é algo que demanda
o cuidado proporcionado pelo pensamento crítico, pela reflexão e compreensão
profunda dos problemas. Neste sentido, a filosofia se apresenta como um campo
vasto e diversificado para pensar a tecnologia, contribuindo com novas
perspectivas e insights.
Termina na próxima sexta-feira
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