quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Memento Mori

"Por que estão chorando? Acreditaram que eu fosse imortal?"
  (Luís XIV, censurando dois de seus criados, que soluçam ao vê-lo expirar, por não terem se preparado para perdê-lo)
Neste dia em que uma imensa quantidade de integrantes deste planeta celebra a lembrança de pessoas que diz terem sido por ela queridas, e que, após a ocorrência de um fenômeno denominado morte, ela diz acreditar (embora suas atitudes muitas vezes demonstrem não acreditar) que estejam vivendo em outra dimensão, este blog no qual, muitas vezes, são publicadas postagens focalizando temas estranhos e / ou provocadores de incômodo, apresenta uma postagem com um estranho título: Memento Mori. Uma postagem elaborada, em sua maior parte, por meio de compilação de uma palestra da extraordinária professora de filosofia Lúcia Helena Galvão intitulada "Vida e Morte, sob o olhar da filosofia", encontrável no endereço https://www.youtube.com/watch?v=8QtWMm0p_d4.
Nesta sinistra civilização (sic) na qual sobrevivemos, a lembrança que a maioria de seus integrantes tem da morte é tremendamente aterrorizadora. Mas será que em civilizações anteriores também era assim? Segundo Lúcia Helena, não. Aliás, em várias civilizações do passado, tal lembrança era nada aterrorizadora, e em várias delas era algo muito importante. Há uma frase latina chamada Memento Mori que significa literalmente "Lembra-te de que vais morrer".
Nas casas das pessoas, nos locais por onde se passava, nas instituições comerciais, inclusive na urbe como um todo havia essa frase gravada. Por que será que era tão importante para eles lembrarem de que iriam morrer? Será que havia aí algum tipo de morbidez? Será que eram masoquistas? Por que essa necessidade de lembrar constantemente da morte? Houve inclusive um romano muito expressivo, o imperador Marco Aurélio, que dizia que se deveria tomar a morte como conselheira, pois ela é uma excelente conselheira.
Em antigas civilizações as pessoas lembravam da morte não propriamente por causa da morte em si, mas por causa da vida. Achavam que lembrar que se vai morrer dá ao homem uma possibilidade de vida totalmente diferente.
Existe uma teoria que não é latina de origem, mas que influencia as civilizações em geral, que é intitulada teoria do impacto. O que diz essa teoria? Ela diz simplesmente o seguinte: que no contraste nasce a consciência. Vejamos, por exemplo, uma situação muito comum: valorizamos algo que tivemos a vida inteira apenas quando perdemos. Imaginemos o seguinte: o contraste entre duas cores. Se tivermos, por exemplo, um objeto com duas cores - cinza e azul -, por que sei que existem o cinza e o azul? Porque há um ponto em que termina um e começa o outro.
No contraste entre dois planos se produz a consciência, eis uma teoria muito antiga. Então, é quando temos o contraste entre dois planos que percebemos a diferença entre eles e que aprendemos a valorizar, e a avaliar corretamente, cada um dos dois. Sendo assim, quando teríamos a melhor condição de avaliar o valor da vida? Diante da morte. No contraste entre morte e vida temos uma pedra de toque para percebermos qual é o valor da vida; para hierarquizarmos o que é realmente importante.
É muito difícil imaginar uma pessoa que diante da morte pare para contabilizar os recursos e as propriedades que tem ou as contas que estão por vencer. Nesse momento, o ter e o fazer, que valorizamos durante toda a vida, se desvalorizam e reina soberano o ser. Portanto, aí já é perceptível que essa tradição tem razão. Quando nos colocamos frente a frente com a morte temos uma percepção do que é válido na vida, o que nos dá uma oportunidade de, trazendo essa percepção para o momento presente, hierarquizar corretamente a nossa vida. Vários pensadores ao longo da história já falaram sobre isso.
Há um estudo de uma psiquiatra tanatologista americana que passou a vida inteira cuidando de doentes terminais no qual ela diz o seguinte: quanto mais materialistas eram os meus pacientes mais raramente chegavam lúcidos ao momento da morte. Segundo ela, diante da morte fica claro para o homem o que real e o que não é. Então, se ele empregou toda sua vida em coisas que nesse momento ele percebe que têm nenhuma consistência, a consciência não suporta esse impacto, e se evade. Diante da morte só vale o que somos; só vale o que construímos dentro de nós e nas pessoas a nossa volta no campo do ser, o ter fica muito secundário, pois é válido apenas como meio e nunca como fim. Então, fica claro que a vida é um recurso que pode ser bem ou mal empregado; pode ser bem ou mal administrado. Diante de uma mesma quantidade de recursos, uma pessoa faz maravilhas e a outra faz nada.
Tomar a morte como uma conselheira muito preciosa, pois a ideia da morte nos dá uma noção clara para aprender a viver. Uma das dificuldades que se tem hoje em dia é que tudo é considerado relativo. Ao tentar advertir uma pessoa de que sua  conduta não é a mais apropriada, pode-se ouvir algo mais ou menos assim: o que é bom pra você não é bom pra mim. O fato de você não concordar com o que estou fazendo não quer dizer nada. Tudo é relativo, ao ponto de hoje existirem muitos que consideram que os valores são relativos. A justiça, a bondade, a fraternidade, tudo é relativo. Então, o que é justo pra você não é pra mim. Quem é você pra me julgar? Como se não houvesse absolutos na natureza. Isso é uma coisa curiosa porque torna a vida quase inviável. Já imaginaram chegar para um corrupto e dizer: o que você faz não é justo. E ouvir: pra mim é; é uma questão relativa; o que é bom pra você não é pra mim. Como controlamos a vida social nesses termos?
Estamos afogados numa imaturidade do ser humano de achar que tudo é relativo, e não reconhecer que há certas coisas absolutas. Nesse sentido, vida e morte são duas balizas muito importantes porque não há como questionar nenhuma das duas. Acredite você ou não, nelas, elas estão aí. E provam ao homem que há certas coisas, acredito até que muitas coisas, que existem, acredite o homem ou não. E o obrigam a se posicionar diante dessas balizas com maturidade e não ficar brincando de esconde-esconde com a vida eternamente achando que ele pode criar a justiça ou criar a bondade porque isso é um terreno de relatividades onde nada existe de real.
Esse tema da relatividade é um dos problemas sérios que temos hoje em dia. O homem acha que o que ele pensa do mundo é o que é. Na Idade Média todo mundo achava que a Terra era plana (hoje, a quantidade dos que acham diminuiu muito). A Terra deixou de ser geoide por causa disso? Existem coisas que são ainda que o homem não existisse e que são por si, e não porque a gente acredite ou deixe de acreditar nelas. E uma das coisas que a nossa sociedade brinca é de não falar da morte como se por não falar e não pensar nela ela deixasse de existir. Ou seja, achamos que temos todo esse poder na natureza, mas as coisas não são bem assim.
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"Existem coisas que são ainda que o homem não existisse e que são por si, e não porque a gente acredite ou deixe de acreditar nelas. E uma das coisas que a nossa sociedade brinca é de não falar da morte como se por não falar e não pensar nela ela deixasse de existir. Ou seja, achamos que temos todo esse poder na natureza, mas as coisas não são bem assim.", diz Lúcia Helena Galvão em sua maravilhosa palestra que merece ser assistida na íntegra (https://www.youtube.com/watch?v=8QtWMm0p_d4).
Não, não é por não falar e não pensar na morte que ela deixará de existir. Sim, é ao nela falar e ao nela pensar que aprenderemos a com ela lidar, e a partir de tal aprendizado deixar de com ela nos desesperar e passar a enxergá-la como algo capaz de orientar-nos na busca de um melhor roteiro para esta viagem que a gente chama de vida.
Memento Mori! ... "Lembra-te de que vais morrer", pois essa lembrança dá ao homem uma possibilidade de vida totalmente diferente. Uma possibilidade de conduzir suas ações e seus pensamentos por esse percurso que a gente chama de vida seguindo um roteiro totalmente diferente daquele que o homem seguirá se desprezar tal lembrança.
E para encerrar esta já longa postagem alusiva ao Dia de Finados, segue um trecho de um texto de Jim Brown muitas vezes atribuído ao Dalai Lama. Intitulado Entrevista com Deus, até o momento da publicação desta postagem ele era encontrável em https://www.pensador.com/frase/OTA3Njc3/.
Entrevista com Deus
- O que mais O surpreende a respeito dos homens?
Deus respondeu:
- Que vivam como se nunca fossem morrer e morram como se não tivessem vivido...
A pretensiosa intenção desta postagem é fazer com que, ao lembrar aos homens de que eles vão morrer (Memento Mori), ela ajude a contribuir na tarefa de fazer com que Deus deixe de surpreender-se com os homens. Compreendido?

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