terça-feira, 9 de outubro de 2012

Na essência do conflito (final)

Continuação de sexta-feira
Há professores que acreditam que a formação ética e moral compete à família, e não à escola. O que o senhor acha dessa postura?
Isso é totalmente absurdo. Não digo que ela não participa, mas nunca coube à família, em momento algum, esse papel. Precisa-se analisar a história da família. De que família estamos falando? De qual classe social? Famílias ricas e pobres são muito diferentes. A família é uma geometria variável. E ela sempre foi, durante muito tempo, ajudada, para não dizer dominada, pela religião. No começo do século passado, quando apareceu a escola pública, republicana e laica, havia também uma preocupação com a formação da cidadania. Colocar nas costas da família, exclusivamente, a formação moral e ética é um erro histórico. E também lógico, pois como se pode colocar em uma instituição, tão frágil hoje em dia, uma coisa que interessa à sociedade inteira?
Quais as diferenças entre os papéis da família e da escola na formação ética e moral?
Do ponto de vista legal, o papel da família é o de sustentar esse ser que colocou no mundo. Claro que transmitir moral, valores e ética faz parte, mas é muito difícil definir exatamente o que fazer, pois há uma vagueza e muito afeto. O papel da escola é mais simples de ser definido porque é uma instituição que tem regras – e a família não tem regras. A escola, basicamente, é uma transição entre o espaço privado e o espaço público. E a família é essencialmente o espaço privado. Como uma pessoa se comporta com seus pais, filhos e irmãos é completamente diferente de como vai se portar na vida em sociedade. Claro que a família tem sua função, mas tem coisas que o espaço público exige e que são problemas da escola.
Como equilibrar a relação entre família e escola?
Do ponto de vista moral não tem problema algum, porque a Constituição Federal brasileira consagra esses princípios. Logo, tudo o que fere os direitos humanos, como injustiça, racismo e outras atitudes que ferem a dignidade, não pode ser cometido. A escola tem todo o direito de determinar que tais valores e tais comportamentos são exigíveis de todos, das crianças, dos professores e dos funcionários. Além disso, a escola pode deixar claro aos pais que eles devem delegar a ela autoridade. Tem coisa que depende da família, mas muitas coisas dependem da escola, e esta só pode cumprir suas funções se os pais derem a ela o direito de mandar em seus filhos. Se a escola mandar errado, aí os pais podem reclamar ou tirar o filho da escola.
“A escola é uma transição entre o espaço privado e o público. Claro que a família tem sua função, mas tem coisas que o espaço público exige que são problemas da escola”
E do ponto de vista ético?
Do ponto de vista dos valores da vida, a escola tem de ter total autonomia. Quem enfrenta um grande problema nesse sentido é a escola privada. Para ter mais alunos, muitas vezes ela faz concessões, adapta-se aos valores das famílias, não contradiz os pais. Aí eu acho que ela está perdida. Creio que a escola tem de defender seus valores. Seja qual for seu ponto de vista ético, a família tem de compreender e aceitar, ou não. Os valores morais são obrigatórios, os éticos não, mas têm de ser respeitados pela família.
Como se dá a relação entre a crença religiosa, a formação moral e ética e a laicidade do ensino?
Laicidade não é não ter religião. É aceitar toda e qualquer religião. Uma instituição é laica quando não permite que a religião esteja entre seus valores. Algumas escolas religiosas, preocupadas com a moral e ética, têm objetivos maiores e não são máquinas de vestibular. Mas a religião é condição necessária à moral e à ética? A resposta é claramente não. Toda religião tem uma moral, que pode até não ser boa, pode ser inclusive contraditória aos valores da nação.
Na sala de aula, como o professor pode lidar com as duas formações?
O professor sozinho não consegue fazer muita coisa. O principal erro não é tanto do professor. No que diz respeito à ética e à moral, em geral, o problema é da instituição. Não é comum existir um programa institucional para pensar esses temas. O resultado é que o professor fica isolado. Ele pode fazer um bom trabalho e o coletivo agir no sentido contrário. Ele tem de se sentir fazendo parte de uma estratégia. Fui convidado a dar uma palestra em um colégio bem famoso e bom de São Paulo, onde há um grupo que dá aula de cidadania para alunos do ensino médio. Como cheguei um pouco antes do horário, fiz um tour pela escola. No final da palestra, perguntei retoricamente: “As paredes desta escola falam o quê?” Eu mesmo respondi imediatamente: “tecnologia”. Eles não haviam pensado nisso antes, mas concordaram. “E a cidadania?” Está totalmente ausente das paredes. A última coisa que alguém pode imaginar, quando entra em uma escola como essa, é que a cidadania é um tema importante. É preciso colocar nas paredes; é algo institucional. Não estou dizendo que a cidadania é a coisa mais importante, mas não se pode deixá-la no rodapé. Os professores que falam dela raramente são considerados os mais importantes. É mais um problema da escola. Hoje se coloca demasiadamente as coisas nas costas do professor. Sozinho, o que ele fará?
A associação da disciplina educação moral é cívica ao regime militar ainda gera receios ao tema?
Hoje, não tanto. É mais folclórica. A ideia da educação moral e cívica, enquanto curso, era errada, a despeito de sua origem ditatorial. Você não pode fazer educação moral em um semestre, em quatro meses. A educação cívica, a rigor, procura fazer os alunos entenderem quais são as leis e organização do país onde eles vivem, pode ser inclusive na História.

5 comentários:

CJ disse...

Bom dia amigo Guedes,

Há tempos estou afastado dos comentários, porém após ler seu último artigo me senti obrigado a me manifestar quanto ao relatado acima.
Na sua resposta quanto à primeira pergunta fiquei alarmado com a sua opinião em relação à formação ética e moral feita pela família em que você diz "Não digo que ela não participa, mas nunca coube à família, em momento algum, esse papel."
Penso bem diferente de você em relação à formação de uma criança. É sim uma responsabilidade da família (principalmente pai e mãe) ensinar os valores éticos e morais para seus filhos, não importando classe social, credo, cor ou qualquer outra diferença que possa ser apresentada. Entendo que o papel do Estado também é muito importante na criação dos filhos, porém não podemos retirar a responsabilidade dos pais. Uma criança, desde o seu nascimento, esta aprendendo e nesses primeiro anos, o Estado, tem pouca participação na educação dos filhos. Cabe principalmente aos pais ensinar valores para seus filhos. Muitas crianças só tem acesso a uma instituições de ensino após os 3 ou 4 anos, sendo que toda a sua base vem de experiências com a sua família. Os pais são exemplos para os filhos do que se deve fazer e do que não se deve fazer, a Instituição e o professor já recebe uma criança com uma base de conhecimentos que podem ser facilitadores ou complicadores na continuidade da sua educação.
Sim os pais são responsáveis pela Educação e ensinam direta ou indiretamente a seus filhos valores morais e ética muito antes do Estado, não devemos transferir esta responsabilidade apenas as instituições de ensino, Educação começa em casa.

Abraços,

Guedes disse...

Amigo CJ,

É uma enorme satisfação voltar a merecer um comentário seu neste blog. Em um blog cuja intenção é espalhar ideias, comentários são muito bem vindos, pois são eles que propiciam a troca de ideias. E talvez convenha lembrar que comentários não sejam apenas para concordar com o que é dito nas postagens, mas também para discordar. E que discordâncias devem ser discutidas. É o que farei a seguir.

Você diz que após ler meu último artigo se sentiu obrigado a se manifestar, pois ficou alarmado com a minha opinião em relação à formação ética e moral feita pela família em que eu digo "Não digo que ela não participa, mas nunca coube à família, em momento algum, esse papel."

Quem diz isso não sou eu, e sim Yves de La Taille, mas como reproduzi a entrevista você entende que a afirmação seja minha. Após a publicação de algum texto, costumo compartilhar as reflexões provocadas por ele e ainda farei isso sobre a entrevista de Yves de La Taille, mas o seu comentário leva a antes manifestar-me sobre a polêmica frase. Ela é realmente impactante e deve tê-lo impedido de perceber que ainda no mesmo parágrafo há a seguinte afirmação: “Colocar nas costas da família, EXCLUSIVAMENTE, a formação moral e ética é um erro histórico.” E no parágrafo seguinte é dito: “Do ponto de vista legal, o papel da família é o de sustentar esse ser que colocou no mundo. Claro que TRANSMITIR MORAL, VALORES E ÉTICA FAZ PARTE, mas é muito difícil definir exatamente o que fazer, pois há uma vagueza e muito afeto.” Os destaques em maiúsculo são meus. E na polêmica frase, eu também faço um destaque: NÃO DIGO QUE ELA NÃO PARTICIPA, (...)”.

Portanto, no meu entender, a formação ética e moral é algo que faz parte da família, mas não cabe, exclusivamente, a ela. Gosto muito de uma afirmação feita no excelente filme “O diário de uma babá” que é mais ou menos assim: “Na África, a responsabilidade da educação de uma criança é de toda a aldeia”. E em uma edição do “Globo Repórter” foi mostrado que em uma pequena região do Japão (da qual não lembro o nome) qualquer adulto sente-se responsável por qualquer criança que encontre. Incluo-me entre os que entendem que a formação ética e moral seja responsabilidade de toda a sociedade. E considero que as escolas sejam parte da sociedade.

O tamanho da minha resposta possibilitou descobrir que o blog limita em 4.096 caracteres o tamanho dos comentários. Sendo assim, termina aqui a primeira parte da minha resposta. E a segunda segue imediatamente a esta.

Guedes disse...

Outra coisa dita por Yves de La Taille que deve ser considerada é a seguinte: “como se pode colocar em uma instituição, tão frágil hoje em dia, uma coisa que interessa à sociedade inteira?” Você concorda que a cada dia a família torna-se mais frágil? Concorda que cada vez mais ela se desfaz com muita facilidade? Concorda que algo que interesse à sociedade inteira deve ser de responsabilidade de toda a sociedade?

Concordo quando você diz que não podemos retirar a responsabilidade dos pais, mas incluo em tal responsabilidade cobrar das escolas a participação na formação ética e moral, pois os filhos passam muito mais tempo nas escolas do que no convívio com eles. Você diz que “muitas crianças só têm acesso a uma instituições de ensino após os 3 ou 4 anos, sendo que toda a sua base vem de experiências com a sua família.” Mas, diante do que vejo, discordo de tal afirmação, pois quem pode pagar por creches envia para lá os seus filhos assim que termina a licença maternidade. Afinal, os pais trabalham em tempo integral não é mesmo? Os que tiverem mais dinheiro podem substituir a creche por babás. Os que tiverem menos dinheiro abandonam os filhos a própria sorte, ou pior, ao próprio azar. São pouquíssimas as crianças que dispõem da atenção dos pais. Portanto, como acreditar que sozinhos eles darão conta da formação ética e moral dos filhos?

O fato de os pais trabalharem em tempo integral leva, inevitavelmente, a terceirização da formação ética e moral dos filhos. É ínfima a quantidade de tempo que a maioria dedica aos filhos. E, neste caso, discordo daquele discurso de que qualidade seja mais importante do que quantidade. Será que ao misturar pouca água de altíssima qualidade com muita de baixa qualidade o resultado é mais afetado pela qualidade do que pela quantidade? Creio que não.

Portanto, no meu entender, enquanto os filhos passarem muito mais tempo nas escolas do que com os pais a afirmação de Yves de La Taille será verdadeira. É essa a minha opinião, e na próxima postagem compartilharei as minhas reflexões sobre a polêmica entrevista. Aliás, a minha resposta acabou tornando-se uma verdadeira postagem, não é mesmo?

Abraços,
Guedes

Homerix disse...

Gente, que discussão excelente!!!

E como uma frase impactante faz as pessoas cegarem ao que vem depois explicando!!

Você esclareceu tudo ao amigo CJ, caro Guedes!!

E tudo isso me fez lembrar daquela entrevista da Renata,que você tanto admirou, lembra? Do calendário das Virtudes!! Com a simplicidade de um discurso leigo, ela disse quase a mesma coisa do especialista da USP, não é mesmo!! Quer dizer, nem tanto, nem tanto, mas pareceu a mesma linha, não??

Agora, ela está dedicada quase que exclusivamente ao livro e abandonou o projeto, uma pena... mas dá pra entender, né!!

Grande abraço!!

Homerix

profa rosana disse...

eu como simples prof de ed inf. da rede munc. de sp, não poderia discordar de tão renomados pensadores, porem vivemos dia a dia com a falta de valores, sociais, éticos e morais de cças de 3 à 6 anos, reforçados por seus pais. tbem trabalhamos, temos nossas obrigações familiares e não deixamos por isso de educar nossos filhos sobre tais valoes. a meu ver o gde impasse esta em delegar à escola a conciliação de diferentes ideais familiares, sem termos regras claras pelos orgãos institucionais, de nosso direito qto a cobrança de pais e filhos em cumprir não somente o legal, mas os valores que estão implícitos para todos,famílias, escola e sociedade como um toda para formação do caráter do indivíduo, sendo nós comumente vítimas de pais negligentes em seu papel que "terceirizam" suas obrigações criando crianças desrespeitosas e indisciplinadas.me pergunto-será que aqueles cujos papeis estão sendo cumpridos, e não raro, com prejuízo da qualidade da aula,devem aceitar aqueles que simplesmente a delegam a escola ?