Quinze anos após a sua criação,
transcorridos quatorze meses de dezembro, publicadas setecentas e noventa e
cinco postagens, nenhuma delas focalizando a figura do Papai Noel, eis que, em
dezembro de 2025, aqui está ela. Na condição de um blog cuja intenção é
espalhar ideias interessantes encontradas nesse percurso que a gente chama de
vida, apenas neste ano encontrei um texto sobre Papai Noel que despertou minha
vontade de espalhá-lo por meio deste blog. Onde o encontrei? Em um livro
lançado em 2024 com um instigante título: "A Bula de Cada Criança - O
olhar humanista de um pediatra sobre como cuidar dos filhos sem receita
pronta", de autoria de Roberto Cooper. Livro do qual já extraí vários
textos para espalhar por este blog, e do qual ainda extrairei vários outros.
Feito este preâmbulo, vamos ao texto.
Papai Noel existe?
Ora, até uma criança sabe a resposta dessa pergunta: claro que existe! Existe porque somos seres simbólicos e adoramos uma fábula. E não são só nossos filhos que adoram uma historinha. Nós, adultos, mantemos o fascínio por fábulas. Claro que não são mais histórias de princesas, dragões, porquinhos e bruxas. Mas adoramos ouvir fábulas de suplementos, vitaminas, cremes, alimentos que fazem isso ou aquilo, novos exercícios que gastam milhares de calorias em poucos minutos, métodos para mantermos a memória ou aumentarmos a libido, livros que garantem a felicidade plena em dez passos, sem esquecer a quantidade de pessoas que devolvem a pessoa amada em três dias. A lista de fábula que nós, adultos, nos contamos mutuamente é interminável. E ainda temos a ousadia de questionarmos se Papai Noel existe!?
A fábula tem uma função importante no desenvolvimento das crianças ao estimular a criatividade e contribuir para que lidem com as questões da vida, inicialmente de forma lúdica. Nesse contexto, não há nenhuma discussão a respeito da existência do Papai Noel. Só nos resta definir qual Papai Noel vai existir. Como assim, existe mais de um Papai Noel? Sendo uma narrativa, existirão tantos papais Noel quantas narrativas existirem. Mas, basicamente, existem dois papais Noel e devemos escolher qual deles será o que vamos apresentar aos nossos filhos.
Existe o Papai Noel que representa a sociedade de consumo, trazendo presentes, se tornando o destinatário de listas intermináveis de pedidos. De alguma forma, esse Papai Noel existirá em todas as narrativas porque vivemos em uma sociedade em que o consumo é algo hipertrofiado e que, muitas vezes, preenche vazios existenciais. Esse vazio não é só dos adultos que acabam confundindo ser com ter. Para muitos, o que eu tenho define quem eu sou. Como a possibilidade de ter é sempre infinita, a sensação de ser é frágil e sujeita aos modismos de consumo. Assim que eu acabo de comprar o tablet de última geração, me tornando alguém, lançam outro e passo a me sentir vulnerável, inseguro, por não TER o último modelo.
Se os pais são consumistas ou mesmo que não sejam, mas por vários motivos se sintam "devedores" dos filhos (trabalham muito, por exemplo), podem tentar compensar com a compra de presentes. Esse Papai Noel é o do comércio que tenta nos confundir com mensagens que embaralham objetos e coisas com afeto e emoção. Esse Papai Noel de listas enormes e pouco ou nenhum limite é uma narrativa que ensinará nossos filhos a se tornarem consumidores vorazes, muitas vezes na tentativa de preencher uma lacuna que não é de coisas materiais. Esse é o Papai Noel que incentiva o egocentrismo porque a minha felicidade está em ter o que o outro não tem.
Existe um outro Papai Noel que representa a bondade, a solidariedade e a generosidade. Um Papai Noel que fala sobre quem somos, antes de falar sobre o que temos. Um Papai Noel que recebe uma cartinha na qual eu conto o que eu fiz no ano que passou e não só uma lista do que quero. Quando pedimos a nossos filhos que escrevam contando o que fizeram, estamos dando a oportunidade (e o aprendizado) de que parem um minuto para pensar nas suas realizações e não só nos seus desejos de possuir algo. Um Papai Noel que tem limites nas possibilidades de presentear, que associa presentes a algum mérito e que coloca cada criança como parte de um universo de outras crianças (ele tem muito trabalho, precisa visitar todas as crianças), fazendo com que cada uma se sinta especial, mas não única. Esse Papai Noel é o do afeto e do carinho.
É o que ensinará aos nossos filhos que as coisas (objetos) fazem parte das nossas vidas e nos dão muito prazer, mas que a nossa felicidade não pode ser definida pelo que temos e, sim, por quem somos. Somos humanos e, como tal, seres carregados de emoção e empatia , além de racionais. Somos originalmente gregários, dependendo uns dos outros. Podemos (e somos) diferentes em muitas coisas, mas nem melhores nem piores do que ninguém. Esse é o Papai Noel que incentiva a solidariedade porque, diferentemente do que ocorre com objetos, quanto mais dividimos emoções e sentimentos, mais estes se multiplicam.
Cada família vai escolher qual narrativa de Papai Noel quer para si e, consequentemente, para seus filhos.
*************
Segundo o
pediatra Roberto Cooper, "Sendo uma narrativa, existirão tantos papais
Noel quantas narrativas existirem. Mas, basicamente, existem dois papais Noel e
devemos escolher qual deles será o que vamos apresentar aos nossos
filhos." Quais são os dois tipos básicos? "O que representa a
sociedade de consumo e o que representa a bondade, a solidariedade e a
generosidade". Ou seja, no meu entender, segundo ele, bondade,
solidariedade e generosidade são qualidades incompatíveis com sociedade de
consumo.
"O Papai Noel que incentiva o egocentrismo porque a minha felicidade está em ter o que o outro não tem." Esse Papai Noel é o do egoísmo. "Um Papai Noel que coloca cada criança como parte de um universo de outras crianças (ele tem muito trabalho, precisa visitar todas as crianças), fazendo com que cada uma se sinta especial, mas não única. Esse Papai Noel é o do afeto e do carinho."
Feitas as
descrições acima, o pediatra diz que "De alguma forma, o primeiro dos papais
Noel citados existirá em todas as narrativas porque vivemos em uma sociedade em
que o consumo é algo hipertrofiado e que, muitas vezes, preenche vazios
existenciais." Sim, de alguma forma, o primeiro existirá em todas as
narrativas, enquanto o segundo corre um risco enorme de não existir em alguma.
Afinal, sobrevivemos em uma sociedade em que a maioria das pessoas,
simplesmente, faz o que ouve dizer que a maioria está fazendo, não é mesmo?
Diante da
associação do Papai Noel à sociedade de consumo, o irresistível método das
recordações sucessivas foi buscar para esta postagem algo dito pelo
inesquecível Millôr Fernandes a José Carvalho, industrial, dono da DUCAL, em
conversa ocorrida em 1958, registrada no livro "O Livro Vermelho dos
Pensamentos de Millôr.".
"Papai Noel, filho da exploração comercial, da ignorância infantil e da incapacidade de reação paternal, é um velho meio idiota, meio malandro, extremamente desonesto, que se presta a servir de intermediário para o enriquecimento da sociedade de consumo, em todo o mundo. Um canalha."
"Um
Papai Noel, filho da exploração comercial, que se presta a servir de
intermediário para o enriquecimento da sociedade de consumo", diz Millôr
Fernandes. "Um Papai Noel do comércio que tenta nos confundir com
mensagens que embaralham objetos e coisas com afeto e emoção. Um Papai Noel que
ensinará nossos filhos a se tornarem consumidores vorazes, muitas vezes na
tentativa de preencher uma lacuna que não é de coisas materiais. Um Papai Noel
que incentiva o egocentrismo porque a minha felicidade está em ter o que o
outro não tem.", diz o pediatra Roberto Cooper. "Um canalha", conclui
Millôr. E com esta conclusão, termino aqui minhas reflexões sobre o primeiro
dos papais Noel a que se refere o pediatra, e passo ao segundo.
"Existe um outro Papai Noel que representa a bondade, a solidariedade e a generosidade. Um Papai Noel que fala sobre quem somos, antes de falar sobre o que temos. Esse Papai Noel é o do afeto e do carinho. É o que ensinará aos melhor aquinhoadas nossos filhos que as coisas (objetos) fazem parte das nossas vidas e nos dão muito prazer, mas que nossa felicidade não pode ser definida pelo que temos e, sim, por quem somos. Esse é o Papai Noel que incentiva a solidariedade porque, diferentemente do que ocorre com objetos, quanto mais dividimos emoções e sentimentos, mais estes se multiplicam."
Tendo
descrito dois papais Noel, Roberto Cooper termina seu instigante texto dizendo:
"Cada família vai escolher qual narrativa de Papai Noel quer para si e, consequentemente, para seus filhos.
Com a
intenção de ajudar cada família nessa difícil escolha, ele, sempre ele, o
método das recordações sucessivas faz-me trazer para esta postagem uma
instigante afirmação feita por Dumbledore, o mago barbudo do filme Harry Potter e o Cálice de Fogo: "Tempos difíceis estão por vir. Em breve, teremos que
escolher entre o que é certo e o que é fácil."
Afirmação que, vinte anos após ter sido pronunciada (o filme
foi lançado em 2005), no meu entender, deve ter dela suprimida a expressão
"Em breve", pois os tempos difíceis que, naquela época, estavam por
vir, com certeza já chegaram, há algum tempo, embora a maioria demonstre não
ter percebido.
Dito isto, agora é esperar que cada família consiga escolher
a narrativa de Papai Noel que seja melhor, não para si, mas sim para a
sociedade como um todo, o que, consequentemente, implica em ser melhor para
seus filhos, considerando que eles também são integrantes da sociedade, embora
a maioria das famílias possuidoras de melhores condições financeiras imagine
que eles nada tenham a ver com ela (sociedade).
Nenhum comentário:
Postar um comentário