Continuação de domingo
Com seu
trabalho de pesquisador, escritor e palestrante, Gertz tem procurado fazer
provocações, na tentativa de inspirar e engajar as pessoas para que elas tentem
fazer mais perguntas e não se contentem com as respostas que veem sendo dadas.
Na
Holanda, falar de filosofia para tecnólogos é mais fácil, pois segundo ele
trata-se de um saber respeitado "por quem está no poder", algo que em
outros países, como os EUA, não ocorre.
"A
melhor coisa sobre a IA é também a pior: ela pode nos ajudar a conseguir o que
queremos sem ter que pedir ajuda a outras pessoas. Quando me mudei para a
Holanda, consegui me virar sem saber holandês com a ajuda do Google Tradutor.
Mas essa ajuda é também o motivo pelo qual tem sido tão difícil para mim
aprender a língua, e o Google Tradutor se tornou algo de que dependo como uma
muleta."
Na
Universidade de Twente, Gertz diz que procura ensinar seus alunos a ler a
história da filosofia e entender como ela pode ser aplicável para ajudar a
levantar questões sobre os problemas enfrentados hoje. Segundo ele, a filosofia
é muito útil para prever por que temos que entender a relação entre o passado e
o presente para tentar passar do presente para o futuro.
"Os
filósofos são bons em fazer perguntas, especialmente quando se trata de tentar
pensar em como os avanços tecnológicos podem dar errado ou pelo menos não
acontecer como esperado."
O
existencialismo, a fenomenologia e a teoria crítica são escolas da filosofia
que ele considera mais importantes para abordar a tecnologia. Para ele, a
pergunta mais importante a ser feita sobre IA é simplesmente "o que é
isso?". Esta pergunta, diz, leva inevitavelmente ao exército invisível de
trabalho humano em lugares como África Oriental, que fazem a IA parecer
"inteligente", e ao mesmo tempo à gigantesca e desastrosa pegada de
carbono dos centros de dados usados pelas empresas de tecnologia que tentam
desenvolver a IA no mundo. Fala-se muito pouco sobre esse custo ambiental
embarcado na tecnologia ChatGPT.
Sobre o
futuro das Big Techs e os possíveis efeitos positivos da regulamentação, Gertz
parece um pouco desanimado. "É difícil regular empresas de tecnologia
porque apenas as pessoas que trabalham nelas parecem capazes de entender o que
elas estão fazendo. Portanto, pedir ajuda a elas na elaboração de
regulamentações, como os EUA e o Reino Unido fizeram, vai, é claro, enviesar a
regulamentação a favor das empresas de tecnologia."
É
preciso, na sua visão, que as pessoas em geral se levantem e rejeitem as
"inovações", para forçar as empresas de tecnologia a fazerem mudanças
reais que beneficiem a humanidade, e não apenas a si mesmas – como ocorreu com
o lançamento do Google Glass, exemplifica.
Um de seus
ex-alunos de Twente é Leonardo Werner, advogado que cursou por lá o mestrado em
filosofia da ciência, tecnologia e sociedade e se tornou, agora de volta ao
Brasil, consultor associado da Principia Advisory e também articulista da
FreedomLab, um think tank baseado em Amsterdã.
Sabendo
que estava se arriscando a estudar filosofia em uma "sociedade
técnica" movida a dados, que valoriza pessoas multitarefas e ama inovação,
Werner acabou descobrindo que esta sociedade que busca os "comos"
parou de pensar nos "porquês". Estudar criticamente textos difíceis e
ideias complexas e mergulhar fundo na subjetividade alargou sua visão de mundo
e a compreensão sobre valores humanos.
"Se
a nossa medida para tudo na vida for a capacidade de executar tarefas
eficientemente, então a IA certamente sairá vencedora. Precisamos nos
perguntar, então, quais valores podem resgatar, ressignificar, preservar e
promover a nossa humanidade", diz.
Foi Gertz
quem lhe apresentou Martin Heidegger e Jacques Ellul, dois filósofos que ele considera
essenciais para quem quer compreender o fenômeno tecnológico.
"Em
1954, Heidegger escreve um artigo chamado 'A questão da técnica'. Também no
mesmo ano, Ellul publica o livro 'La Téchnique', traduzido para o português
como 'A sociedade tecnológica'. São duas leituras reveladoras e fascinantes",
indica.
"Werner
também é leitor assíduo de outro filósofo, este bem contemporâneo, o
sul-coreano naturalizado alemão Byung-Chul Han, autor de "A sociedade do
cansaço". Ele comenta que em um livro recente, intitulado "Não
coisas", Han discorre sobre a digitalização do mundo como uma ameaça à ordem
terrena, à ordem das coisas materiais, que são fundamentais para nos dar o
senso de um mundo habitável.
"Ele
afirma que não vivemos mais entre o céu e a terra, mas entre o Google Cloud e o
Google Earth. Não é um mundo mais palpável e nem tangível. Isso nos gera a ilusão
de que somos seres incondicionados e separados da natureza, podendo alcançar
técnicas cada vez mais eficientes para postergar a vida, torná-la mais cômoda e
cada vez mais conveniente. Mas esse mundo digital não nos traz nenhuma
orientação sobre como viver uma vida boa e significativa. Na ausência de um
norte, optamos simplesmente por viver mais. Mas essa é uma vida sem vivacidade,
esvaziada de significados e de sentido".
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É impressionante a quantidade de
reflexões provocadas por "Os dilemas éticos da tecnologia".
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