sexta-feira, 14 de junho de 2024

Os dilemas éticos da tecnologia (final)

Continuação de domingo
Com seu trabalho de pesquisador, escritor e palestrante, Gertz tem procurado fazer provocações, na tentativa de inspirar e engajar as pessoas para que elas tentem fazer mais perguntas e não se contentem com as respostas que veem sendo dadas.
Na Holanda, falar de filosofia para tecnólogos é mais fácil, pois segundo ele trata-se de um saber respeitado "por quem está no poder", algo que em outros países, como os EUA, não ocorre.
"A melhor coisa sobre a IA é também a pior: ela pode nos ajudar a conseguir o que queremos sem ter que pedir ajuda a outras pessoas. Quando me mudei para a Holanda, consegui me virar sem saber holandês com a ajuda do Google Tradutor. Mas essa ajuda é também o motivo pelo qual tem sido tão difícil para mim aprender a língua, e o Google Tradutor se tornou algo de que dependo como uma muleta."
Na Universidade de Twente, Gertz diz que procura ensinar seus alunos a ler a história da filosofia e entender como ela pode ser aplicável para ajudar a levantar questões sobre os problemas enfrentados hoje. Segundo ele, a filosofia é muito útil para prever por que temos que entender a relação entre o passado e o presente para tentar passar do presente para o futuro.
"Os filósofos são bons em fazer perguntas, especialmente quando se trata de tentar pensar em como os avanços tecnológicos podem dar errado ou pelo menos não acontecer como esperado."
O existencialismo, a fenomenologia e a teoria crítica são escolas da filosofia que ele considera mais importantes para abordar a tecnologia. Para ele, a pergunta mais importante a ser feita sobre IA é simplesmente "o que é isso?". Esta pergunta, diz, leva inevitavelmente ao exército invisível de trabalho humano em lugares como África Oriental, que fazem a IA parecer "inteligente", e ao mesmo tempo à gigantesca e desastrosa pegada de carbono dos centros de dados usados pelas empresas de tecnologia que tentam desenvolver a IA no mundo. Fala-se muito pouco sobre esse custo ambiental embarcado na tecnologia ChatGPT.
Sobre o futuro das Big Techs e os possíveis efeitos positivos da regulamentação, Gertz parece um pouco desanimado. "É difícil regular empresas de tecnologia porque apenas as pessoas que trabalham nelas parecem capazes de entender o que elas estão fazendo. Portanto, pedir ajuda a elas na elaboração de regulamentações, como os EUA e o Reino Unido fizeram, vai, é claro, enviesar a regulamentação a favor das empresas de tecnologia."
É preciso, na sua visão, que as pessoas em geral se levantem e rejeitem as "inovações", para forçar as empresas de tecnologia a fazerem mudanças reais que beneficiem a humanidade, e não apenas a si mesmas – como ocorreu com o lançamento do Google Glass, exemplifica.
Um de seus ex-alunos de Twente é Leonardo Werner, advogado que cursou por lá o mestrado em filosofia da ciência, tecnologia e sociedade e se tornou, agora de volta ao Brasil, consultor associado da Principia Advisory e também articulista da FreedomLab, um think tank baseado em Amsterdã.
Sabendo que estava se arriscando a estudar filosofia em uma "sociedade técnica" movida a dados, que valoriza pessoas multitarefas e ama inovação, Werner acabou descobrindo que esta sociedade que busca os "comos" parou de pensar nos "porquês". Estudar criticamente textos difíceis e ideias complexas e mergulhar fundo na subjetividade alargou sua visão de mundo e a compreensão sobre valores humanos.
"Se a nossa medida para tudo na vida for a capacidade de executar tarefas eficientemente, então a IA certamente sairá vencedora. Precisamos nos perguntar, então, quais valores podem resgatar, ressignificar, preservar e promover a nossa humanidade", diz.
Foi Gertz quem lhe apresentou Martin Heidegger e Jacques Ellul, dois filósofos que ele considera essenciais para quem quer compreender o fenômeno tecnológico.
"Em 1954, Heidegger escreve um artigo chamado 'A questão da técnica'. Também no mesmo ano, Ellul publica o livro 'La Téchnique', traduzido para o português como 'A sociedade tecnológica'. São duas leituras reveladoras e fascinantes", indica.
"Werner também é leitor assíduo de outro filósofo, este bem contemporâneo, o sul-coreano naturalizado alemão Byung-Chul Han, autor de "A sociedade do cansaço". Ele comenta que em um livro recente, intitulado "Não coisas", Han discorre sobre a digitalização do mundo como uma ameaça à ordem terrena, à ordem das coisas materiais, que são fundamentais para nos dar o senso de um mundo habitável.
"Ele afirma que não vivemos mais entre o céu e a terra, mas entre o Google Cloud e o Google Earth. Não é um mundo mais palpável e nem tangível. Isso nos gera a ilusão de que somos seres incondicionados e separados da natureza, podendo alcançar técnicas cada vez mais eficientes para postergar a vida, torná-la mais cômoda e cada vez mais conveniente. Mas esse mundo digital não nos traz nenhuma orientação sobre como viver uma vida boa e significativa. Na ausência de um norte, optamos simplesmente por viver mais. Mas essa é uma vida sem vivacidade, esvaziada de significados e de sentido".
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É impressionante a quantidade de reflexões provocadas por "Os dilemas éticos da tecnologia".

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