quinta-feira, 9 de maio de 2024

Equipe Humana (final)

Continuação de sexta-feira  
Estamos incorporando algumas noções muito antiquadas e depreciativas sobre os seres humanos e o seu lugar na ordem natural da infraestrutura tecnológica do futuro. Engenheiros de nossas principais empresas de tecnologia e universidades tendem a ver as pessoas como o problema e a tecnologia como a solução.
Quando eles não estão desenvolvendo interfaces para nos controlar, estão construindo inteligências para nos substituir. Qualquer uma dessas tecnologias poderia ser direcionada para ampliar as nossas capacidades humanas e o poder da coletividade. Em vez disso, elas são implantadas de acordo com as demandas de um mercado, uma esfera política e uma estrutura de poder que dependem do isolamento humano e da previsibilidade para operar.
O controle social busca impedir o contato social e explorar a desorientação e o desespero decorrentes. Os seres humanos evoluíram com a capacidade de engendrar um número maior de conexões sociais. O desenvolvimento do nosso cérebro, da linguagem, da escrita, da mídia eletrônica e das redes digitais foi impulsionado por nossa necessidade de níveis mais elevados de organização social. A rede - apenas o mais recente desses avanços - desafia-nos com a possibilidade de que o pensamento e a memória possam não ser absolutamente pessoais, mas atividades de grupo. Esse potencial, entretanto, foi ofuscado por uma profunda desconfiança sobre como os seres humanos se comportariam como um coletivo empoderado bem como uma crescente consciência de que pessoas realizadas sob o ponto de vista social precisam de menos dinheiro, sentem menos vergonha, comportam-se de forma menos previsível e agem de maneira mais autônoma.
Pessoas que pensam, sentem e estão conectadas enfraquecem as instituições que tentam controlá-las. Isso sempre foi assim. É por isso que novos mecanismos para criar laços e estabelecer a cooperação entre as pessoas são, quase inevitavelmente, voltados contra esses fins. A linguagem que poderia informar é usada para mentir. O dinheiro que poderia promover o comércio é, em vez disso, acumulado pelos ricos. A educação que poderia expandir as mentes dos trabalhadores é usada para torná-los recursos humanos mais eficientes.
Ao longo do caminho, visões cínicas das pessoas como uma multidão irracional, incapaz de se comportar de maneira inteligente e pacífica são usadas para justificar o fato de sermos mantidos separados e termos negados papéis como atores autônomos em qualquer uma dessas áreas da vida. Nossas instituições e tecnologias não são projetadas para estender nossa natureza humana, mas para refreá-la ou reprimi-la.
Uma vez que nossa humanidade é vista como uma desvantagem em vez de uma força, o impulso cultural e a busca espiritual que resultam dessa impressão buscam transcender nossa personalidade: uma jornada fora do corpo, afastada de nossa humanidade, além da matéria e em qualquer substrato - seja éter, ondas elétricas, realidade virtual ou IA - que transformamos em fetiche naquele momento.
As redes digitais são apenas a mídia mais recente a passar da promoção de vínculos sociais para a destruição deles - de promoção da humanidade para sua suplantação. No entanto, nossa mudança atual pode ser mais profunda e permanente, porque desta vez estamos habilitando tecnologias anti-humanas com a capacidade de se reformular. Nossos dispositivos inteligentes avançam e evoluem mais rápido do que nossa biologia.
Também estamos vinculando nossos mercados e nossa segurança ao crescimento contínuo e à capacidade de expansão de nossas máquinas. Isso é autodestrutivo. Dependemos cada vez mais de tecnologias construídas com a presunção da inferioridade humana e sua irrelevância.
Entretanto a velocidade sem precedentes dessa última reversão do alcance social para a aniquilação social também nos oferece uma oportunidade de entender o processo pelo qual isso acontece. Assim que o fizermos, reconheceremos como isso ocorreu de inúmeras maneiras ao longo da história – da agricultura e da educação ao dinheiro e à democracia.
Nós, humanos - em uma única geração - estamos passando por uma virada no ciclo em tempo real. Esta é a nossa chance. Podemos escolher não mais nos adaptar a ela, mas nos opor a ela.
É hora de reafirmarmos a agenda humana. E devemos fazer isso juntos - não como os atores individuais que fomos levados a imaginar que somos, mas como a equipe que realmente somos.
A Equipe Humana.
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"Este livro é uma exposição apaixonada das reflexões mais urgentes do teórico das mídias Douglas Rushkoff sobre civilização, tecnologia e natureza humana. Em 100 argumentos concisos, o autor defende que somos, em essência, criaturas sociais e que alcançamos nossos maiores objetivos quando trabalhamos em equipe, e não individualmente. [...] Rushkoff nos inspira a encontrar os outros que também entendem essa verdade fundamental para reafirmar a nossa humanidade - juntos."
Extraídas da Quarta Capa do extraordinário livro de Rushkoff, as palavras reproduzidas no parágrafo anterior foram trazidas para esta postagem com a intenção de provocar nos elementos da Equipe Humana o interesse pela leitura dos outros 93 "argumentos concisos" que compõem o livro. As duas apaixonadas postagens espalhando "as reflexões mais urgentes de Rushkoff" contêm apenas os 07 primeiros, mas é com os 100 que "Rushkoff nos inspira a encontrar os outros que também entendem essa verdade fundamental para reafirmar a nossa humanidade - juntos."

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Equipe Humana (I)

Uma das coisas mais significativas que as 3,5 décadas em que atuei como analista de sistemas me possibilitaram enxergar com extrema clareza é que, por melhor que fosse o trabalho do analista, o êxito no desenvolvimento de sistemas de informações só era possível se houvesse também a participação efetiva de outros profissionais, entre eles os programadores e os futuros usuários. Ou seja, desenvolver sistemas de informações com êxito é algo que depende de trabalho coletivo; que depende de profissionais que saibam trabalhar em equipe. Uma vez enxergada tal coisa, a próxima foi que, não apenas no desenvolvimento de sistemas, mas em tudo na vida, o êxito depende do trabalho em equipe. Segue uma descrição sobre o que é uma equipe, algumas características desejáveis em seus membros e coisas que devem ser consideradas na composição de uma equipe.
Equipe é um grupo de pessoas que atuam juntas, de forma colaborativa, utilizando suas habilidades e competências individuais para alcançar um objetivo coletivo. Para serem bem formadas, equipes devem, imprescindivelmente, serem heterogêneas, ou seja, compostas por pessoas de diferentes perfis, origens, culturas e formações. Pessoas com habilidades e conhecimentos individuais complementares.
Dito isto, inspirando-me na afirmação expressa em um tag usado como ilustração neste blog - "Nada que vale a pena é fácil" -, ouso dizer o seguinte: "Tudo que vale a pena requer a participação de uma equipe". Uma equipe cuja dimensão seja proporcional ao tamanho do objetivo coletivo a ser alcançado. Sendo assim, se o objetivo a ser alcançado for a própria sobrevivência de nossa espécie, no meu entender, essa é uma tarefa para a equipe humana.
Equipe Humana, eis o título de um livro que o meu interesse pelo tema equipe possibilitou-me encontrar recentemente. De autoria de Douglas Rushkoff, ele foi publicado no Brasil pela editora Bookman no final de 2023, embora no livro apareça – Porto Alegre 2024. Sobre o autor, ele é apresentado assim:
"É um premiado teórico das mídias que estuda a autonomia humana na era digital. Considerado um dos 10 intelectuais mais influentes do mundo pelo MIT, é professor na Universidade da Cidade de Nova York, Queens, apresentador do podcast Team Human e autor de vários best-sellers, incluindo Present Shock: When Everything Happens Now, que alerta para o comportamento cada vez mais ansioso da sociedade moderna. Rushkoff mora em Hastings-on-Hudson, Nova York."
Feito esse longo preâmbulo, segue a primeira das duas partes em que dividi o primeiro de seus quatorze imperdíveis capítulos para espalhá-lo por meio desta postagem. O motivo da divisão é sempre aquele: não afugentar leitores de curto fôlego.
Equipe Humana
Tecnologias autônomas, mercados descontrolados e mídia belicosa parecem ter colocado a sociedade civil de pernas para o ar, paralisando nossa capacidade de pensar de modo construtivo, de desenvolver conexões significativas ou de agir com propósito. É como se a própria civilização estivesse à beira do abismo e nos faltasse a força de vontade e a coordenação coletivas necessárias para abordar questões de vital importância para a própria sobrevivência de nossa espécie.
Não precisa ser assim.
Todos se perguntam como chegamos a esse ponto, como se houvesse ocorrido um acidente que nos lançou em uma situação de incoerência coletiva e de perda de autonomia. Não foi isso. Há uma razão para a situação atual: uma agenda anti-humana incorporada em nossa tecnologia, nossos mercados e nossas principais instituições culturais - da educação e da religião à formação cívica e à mídia. Foi isso que transformou esses elementos, que deixaram de ser forças de conexão e expressão humanas para se tornarem forças de isolamento e repressão.
Ao desnudar esse plano, tornamo-nos capazes de transcender seus efeitos paralisantes, reconectando-nos uns aos outros e refazendo a sociedade para fins humanos, e não para o fim dos humanos.
O primeiro passo para reverter nossa situação é reconhecer que ser humano é um esporte coletivo. Não podemos ser totalmente humanos sozinhos. Qualquer coisa capaz de nos unir promove a nossa humanidade. Da mesma forma, tudo o que nos separa nos torna menos humanos e menos capazes de exercer nossa vontade individual ou coletiva.
Usamos nossas conexões sociais para nos orientar, para garantir a sobrevivência mútua e para encontrar significado e propósito. Não se trata apenas de uma noção pitoresca, mas de nosso legado biológico. As pessoas que se desconectam das organizações ou comunidades que frequentam geralmente definham sem elas.
Às vezes, unimo-nos uns aos outros para atingir algum objetivo comum, como encontrar comida ou fugir de um predador. Mas também nos aproximamos e nos comunicamos sem uma necessidade clara - porque, com isso, ganhamos força, obtemos prazer e definimos objetivos à medida que desenvolvemos afinidade. Você está aí? Sim, posso ouvir você.
Você não está sozinho.
Ampliamos nossa capacidade natural de nos conectar inventando várias formas de comunicação. Mesmo um meio de mão única, como um livro, cria uma nova intimidade, pois nos permite ver o mundo pelos olhos de outra pessoa. A televisão nos permite testemunhar o que está acontecendo com as pessoas em todo o planeta, e fazer isso em massa. Na TV, assistimos juntos, simultaneamente, a eventos como o pouso na Lua e a queda do Muro de Berlim, e vivenciamos nossa humanidade coletiva como nunca fomos capazes antes.
Semelhantemente, a internet nos conecta de maneira mais específica e, de certo modo, mais reconfortante do que qualquer outra mídia anterior. Com o desenvolvimento da internet, a tirania da mídia de radiodifusão - e suas decisões tomadas de cima para baixo - parecia ter sido quebrada pelas conexões ponto a ponto e pela liberdade de expressão de cada nó humano na rede. A rede transformou a mídia novamente em um cenário coletivo, participativo e social.
Entretanto, como aparentemente acontece com todo e qualquer novo meio, a rede deixou de ser uma plataforma social para se tornar uma plataforma de isolamento. Em vez de engendrar novos relacionamentos entre as pessoas, as tecnologias digitais vieram para substituí-los por outra coisa.
Vivemos com uma abundância de tecnologias de comunicação à nossa disposição. Nossa cultura é composta mais de experiências mediadas do que daquelas diretamente vividas. No entanto também estamos mais sozinhos e atomizados do que nunca. Nossas tecnologias mais avançadas não estão melhorando a formação de um vínculo, mas impedindo que ela aconteça. Elas estão substituindo e desvalorizando nossa humanidade, minando, de muitas maneiras, o respeito que temos uns pelos outros e por nós mesmos. Infelizmente, isso foi planejado. Mas também é por essa razão que isso pode ser revertido.
Termina na próxima quinta-feira.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Reflexões provocadas por "Políticas hipócritas e Cinismo mortífero"

"Quando jornalistas e dirigentes políticos se dão ao trabalho de evocar os países de saída, é tão somente para distinguir os 'refugiados', que deixaram um Estado em guerra e mereceriam certa atenção, dos 'imigrantes', cujas motivações econômicas não bastariam para justificar a hospitalidade.", diz Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique.
"Tão somente para distinguir os 'refugiados' dos 'imigrantes'", porém, tentar classificar todos como imigrantes, pois, segundo o que é dito no parágrafo acima, tal classificação os exime de oferecer "certa atenção que os refugiados mereceriam" e os legitima a negar "a hospitalidade que motivações econômicas não bastariam para justificar", eis o que leva jornalistas e dirigentes políticos a se darem ao trabalho de evocar os países de saída, e para enviarem de volta as indesejáveis pessoas não qualificadas.
"Se as pessoas não são qualificadas para o asilo, como constatamos no atual momento para certas nacionalidades (é o caso dos costa-marfinenses, dos gambianos, dos senegaleses, dos tunisianos), [...] é preciso evidentemente enviá-los de volta a seu país", explicava nesses termos o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin."

Ao fazer a afirmação acima, o ministro francês leva-me a indagar o que são "pessoas não qualificadas para o asilo". Indagação que, recorrendo a um trecho do texto de Bréville, respondo assim: são pessoas não qualificadas "para preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa". Não, a intenção dos países europeus não é oferecer ajuda a pessoas não qualificadas, e sim receber ajuda de pessoas por eles qualificadas para solucionarem seus problemas de "penúria de mão de obra" como se pode deduzir a partir da leitura do seguinte trecho do texto de Bréville:

"A França importa médicos senegaleses; a Itália faz apelo a operários da construção civil argelinos e costa-marfinenses; a Espanha recorre a trabalhadores sazonais marroquinos na agricultura e no turismo. A Alemanha, por sua vez, anunciou recentemente a abertura de cinco centros de recrutamento para trabalhadores altamente qualificados em Gana, no Marrocos, na Tunísia, no Egito e na Nigéria. Desse modo, analisa o sociólogo Aly Tandian, os países de origem cumprem a função de 'incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos'.".

"Incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos". Ou seja, incubadoras africanas onde pessoas são qualificadas para "preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa."

Sim, como diz Bréville, "Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia". Hipocrisia expressa pelos "termos tão vagos usados pela mídia para formular as razões que podem levar um senegalês a abandonar seu país - "fugir da miséria", "encontrar um futuro melhor" -, pois, segundo o diretor do Le Monde Diplomatique:

"No Senegal, essas palavras remetem a uma realidade tangível: aquela dos tratados de pesca que autorizam europeus e chineses a varrer os oceanos com seus barcos de arrastão, capazes de trazer, em uma única viagem, o que uma embarcação local recolhe em um ano; a da apropriação de terras, com seu cortejo de investidores estrangeiros que expulsam camponeses para melhor favorecer produtos de alto rendimento em detrimento de cultivos de subsistência - o amendoim em vez do sorgo e do milhete."

Ou seja, as verdadeiras razões que podem levar africanos a abandonarem seus países não são aquelas expressas nos vagos termos usados pela mídia, e sim a impossibilidade de neles subsistirem devida a atuação de predadores europeus. Impossibilidade de subsistência que leva os jovens a, "depois de tentarem várias outras soluções, decidirem tomar o caminho do Velho Continente", e ao lá chegarem encontrarem as portas fechadas, pois, na condição de explorador, o papel do Velho Continente não é servir aos explorados, e sim deles se servir.
"Ao chegar a Lampedusa, encontram as portas fechadas. No mesmo momento, nas emissoras de televisão e de rádio do Senegal, a região italiana do Piemonte veicula um clipe em wolof: 'Querer uma vida boa não deve levá-lo se sacrificar. A vida é preciosa, o mar é perigoso'. E o cinismo europeu é mortífero.", diz Bréville.
Para quem não sabe, e também para quem sabe, wolof é uma língua falada na África Ocidental, principalmente no Senegal, mas também na Gâmbia, Mauritânia, Guiné-Bissau e Mali.
Sim, "A vida é preciosa, o mar é perigoso" e é por isso que os africanos que conseguem chegar ao Velho Continente jamais deveriam voltar a enfrentar o mar sendo "enviados de volta a seu país", como defende o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin. Sim, como diz Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique, "o cinismo europeu é mortífero".
Entrar livremente em outros países na condição de investidores; concorrer deslealmente com os trabalhadores desses países usando agressivas técnicas modernas; apropriar-se de terras; fechar as portas de seus países àqueles a quem inviabilizaram a subsistência nos deles e enviá-los de volta aos seus países advertindo-os que o mar é perigoso é, no meu entender, mais do que cinismo, é deboche. Tudo isso feito por países que se consideram desenvolvedores de algo que denominam civilização, o que leva-me a lembrar de uma frase que há no topo da capa do DVD de um filme intitulado Instinto: "Nada é mais selvagem que a civilização".
 
 

sábado, 20 de abril de 2024

Políticas hipócritas e Cinismo mortífero

Considerando o que é defendido na postagem publicada em 19 de dezembro de 2011 - "Todo ponto de vista é a vista de um ponto" - e o direito de poder olhar o que acontece no mundo a partir de pontos de vista diferentes daqueles que nos são impingidos por meios de comunicação a serviço dos que se consideram os donos do mundo, segue um elucidativo texto de Benoit Bréville, diretor do Le Monde Diplomatique, publicado na edição de outubro de 2023 do jornal Le Monde Diplomatique Brasil.
Cinismo em Lampedusa
Imigrantes se amontoam às portas do Velho Continente; os serviços de acolhimento transbordam; a direita denuncia, aos gritos, a invasão; a esquerda se divide; cada capital europeia rejeita a responsabilidade; em seguida, todo mundo passa a outra coisa, até a próxima "crise". Visto da Europa, o cenário é conhecido. E visto da África?
Quando jornalistas e dirigentes políticos se dão ao trabalho de evocar os países de saída, é tão somente para distinguir os "refugiados", que deixaram um Estado em guerra e mereceriam certa atenção, dos "imigrantes", cujas motivações econômicas não bastariam para justificar a hospitalidade. "Se as pessoas não são qualificadas para o asilo, como constatamos no atual momento para certas nacionalidades (é o caso dos costa-marfinenses, dos gambianos, dos senegaleses, dos tunisianos), [...] é preciso evidentemente enviá-los de volta a seu país", explicava nesses termos o ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, após o desembarque de 8 mil exilados em Lampedusa, na Itália (TF1, 19 set.).
As razões que podem levar um senegalês a abandonar seu país são geralmente formuladas pela mídia em termos tão vagos que perdem todo o sentido: "fugir da miséria", "encontrar um futuro melhor". No Senegal, essas palavras remetem a uma realidade tangível: aquela dos tratados de pesca que autorizam europeus e chineses a varrer os oceanos com seus barcos de arrastão, capazes de trazer, em uma única viagem, o que uma embarcação local recolhe em um ano; a da apropriação de terras, com seu cortejo de investidores estrangeiros que expulsam camponeses para melhor favorecer produtos de alto rendimento em detrimento de cultivos de subsistência - o amendoim em vez do sorgo e do milhete; a do aquecimento climático, que afeta as colheitas, com estações úmidas mais curtas, inundações e secas mais frequentes, o deserto que avança, o mar que sobe de nível, erode as costas, saliniza os solos; a da repressão política, orquestrada por um presidente, Macky Sall, amigo do governo francês.
Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia. Paralelamente aos discursos marciais, aos acordos, às convenções, serviços de informação organizam a migração de trabalhadores para preencher a penúria de mão de obra e compensar o envelhecimento da população na Europa. A França importa médicos senegaleses; a Itália faz apelo a operários da construção civil argelinos e costa-marfinenses; a Espanha recorre a trabalhadores sazonais marroquinos na agricultura e no turismo. A Alemanha, por sua vez, anunciou recentemente a abertura de cinco centros de recrutamento para trabalhadores altamente qualificados em Gana, no Marrocos, na Tunísia, no Egito e na Nigéria. Desse modo, analisa o sociólogo Aly Tandian, os países de origem cumprem a função de "incubadoras onde nascem, são educados e formados os especialistas, antes de partirem para outros destinos".
Os europeus vão às compras entre os diplomados e alimentam diversas calamidades; sofrendo esses desastres, e depois de tentarem várias outras soluções, os jovens devem se decidir a tomar o caminho do Velho Continente. Ao chegar a Lampedusa, encontram as portas fechadas. No mesmo momento, nas emissoras de televisão e de rádio do Senegal, a região italiana do Piemonte veicula um clipe em wolof: "Querer uma vida boa não deve levá-lo se sacrificar. A vida é preciosa, o mar é perigoso". E o cinismo europeu é mortífero.
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Segundo Benoit Bréville, "Visto da Europa, o cenário é conhecido. E visto da África? [...] Vistas da África, as políticas europeias brilham de tanta hipocrisia. [...] E o cinismo europeu é mortífero.". Sim, quando se olha de pontos diferentes as vistas que se tem são diferentes; muitas vezes, muito diferentes! Você tem alguma dúvida quanto a isso? Se tiver, sugiro o uso do instigante texto de Benoit como base para reflexões; se não tiver, também sugiro.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Reflexões provocadas por "Profissão Sorriso" (final)

Cumprindo o que foi prometido no último parágrafo da postagem anterior, seguem algumas reflexões provocadas pelas cinco sugestões da cientista cognitiva Laurie Santos "para o árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho". Arduidade oriunda, em grande parte, do fato de a responsabilidade pela busca da felicidade no trabalho ser atribuída apenas aos trabalhadores, embora, como diz a própria cientista cognitiva, as companhias sejam beneficiadas com a felicidade dos trabalhadores. Feito este preâmbulo seguem as reflexões referentes a cada sugestão.
Não fuja das frustrações
"Laurie diz que é um erro tentar ignorar as frustrações que podem surgir no trabalho. Em geral, acreditamos que sentimentos negativos atrapalham nosso desempenho, e, por isso, os suprimimos. Mas, para ela, é o contrário: a nossa performance piora quando não encaramos o problema."
"A frustração é um sentimento associado a uma sensação de impotência e de desânimo, que ocorre quando algo que era esperado falha ou não acontece.", eis o significado encontrável em https://www.saudebemestar.pt/pt/blog/psicologia/frustracao/, (até o momento da publicação desta postagem), para a palavra frustração. O negrito foi trazido pela pesquisa.
"Relaxa. Nada está sob controle.", eis a recomendação expressa em um quadrinho daqueles compráveis em papelarias que tenho em casa há muitos anos. Até porque, nesse percurso que a gente chama de vida, por mais que se tente prever tudo o que nele poderá ocorrer, inclusive nos trabalhos em que estivermos envolvidos, o imprevisível está sempre à espreita. Portanto, "quando algo que era esperado falha ou não acontece", o melhor a fazer não é frustrar-se, e sim rever o modo como foi feito e, então, tornar a fazer. Outra coisa que, no meu entender, deve ser considerada, em termos de "não fugir das frustrações", é ter em mente que, quando se trabalha em uma companhia, a imensa maioria dos trabalhos realizados envolve a participação de vários trabalhadores, o que implica em não depender apenas de nós o êxito nos trabalhos dos quais participamos. Sendo assim, será que faz algum sentido frustrar-se "quando algo que era esperado falha ou não acontece"?
Tenha autocompaixão e se abrace
"Um erro comum no ambiente de trabalho, segundo Laurie, é nos pressionarmos o tempo todo a fazermos mais. A pesquisadora, no entanto, acredita que uma melhor forma de motivação no escritório é através da autocompaixão e não da pressão.
Ela diz que precisamos entender que falhas e dificuldades são normais e não devem gerar frustrações. [...] Ela também acredita que todos devem desenvolver o 'autoabraço': um gesto de demonstração de afeto próprio, que ajudaria a enfrentar desafios rotineiros."
"Um erro comum no ambiente de trabalho, segundo Laurie, é nos pressionarmos o tempo todo a fazermos mais.". Um erro comum em qualquer ambiente, segundo eu, é sairmos por aí fazendo toda e qualquer coisa que nos dizem serem inevitáveis sem fazermos qualquer questionamento. "Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem.", eis uma afirmação do sociólogo Zygmunt Bauman, que considero indiscutível.
"Nos pressionarmos o tempo todo a fazermos mais", eis uma consequência natural de acreditarmos que a competição, não a cooperação, seja a prática correta a ser adotada nesse percurso que a gente chama de vida. Competição que começa entre as companhias (a cada dia maiores) continua entre os países (muito deles já sobrepujados por companhias) e termina entre as pessoas, levando-as a "pressionarem-se o tempo todo a fazer mais" para superar a concorrência.
A construção de algo que algum dia faça jus ao termo civilização, passa pela substituição da competição pela cooperação como lei natural da evolução da pretensa espécie inteligente do universo.
Mate a fome de tempo
"A ideia de que nunca há espaço na agenda suficiente para fazer reuniões, preparar relatórios, responder e-mails e ainda ter vida pessoal, é o que se costuma chamar de 'fome de tempo'. [...] Como o tempo é um recurso tão valioso quanto limitado, Laurie sugere repensar o que é produtividade. Ela cita o pesquisador americano Cal Newport e seu conceito de 'pseudoprodutividade'. É quando achamos que o frenesi de se estar sempre ocupado no escritório é confundido com resultados."
Entre as frases que li e jamais esqueci está a seguinte afirmação de Ernest Hemingway: "Jamais confunda movimento com ação." Confusão cada vez maior nestes tempos sombrios.
Executar uma tarefa com qualidade, competência, excelência e com nenhum ou com o mínimo de erros, eis o significado de eficiência. Fazer o que é certo para atingir um objetivo planejado, eis o significado de eficácia. Realizar algo com eficiência e eficácia, eis o que significa produtividade. Caso contrário, o que há é "pseudoprodutividade"!
"- As pessoas acham que são produtivas quando estão fazendo qualquer coisa, não importa o que seja., diz Laurie."
E ao achar tal coisa, as pessoas saem por aí fazendo um monte de coisas que, em sentido figurado, podem ser interpretadas como aquilo que os gatos costumam cobrir com um monte de areia.
"Para combater a fome de tempo, a pesquisadora acredita que devemos dizer mais 'não' para os outros e para nós mesmos, desenvolvendo a capacidade de discernir entre o que é verdadeiramente importante e o que pode ser deixado de lado."
O problema é que neste sinistro mundo onde os empregos são a cada dia mais escassos, dizer "não" para os outros (quando os outros estão a mando do patrão) é algo que poucos têm coragem de fazer. Afinal, como diz uma máxima que rege o mundo corporativo, "Manda quem pode e obedece quem tem juízo"? E o que é ter juízo? É não contrariar quem manda, pois, contrariar costuma resultar em algo indesejável. Não obedecer pode custar o emprego.
Entenda sua vocação
"Há várias particularidades num trabalho que podem casar com nossas habilidades. Laurie aconselha a encontrarmos essa interseção entre a obrigação e aquilo que nos faz orgulhosos de nós mesmos: pode ser, entre outras características, o espírito de liderança, o bom humor, a integridade de caráter, a modéstia ou a perseverança. [...] . Ao focar em nossas forças e aplicá-las conscientemente no ambiente de trabalho, podemos criar uma experiência profissional mais rica e satisfatória."
Entenda sua vocação e resista à tentação de negociá-la em troca de uma maior remuneração ou de uma ilusória sensação de que manda em alguma coisa, pois, no teatro, digo, mundo corporativo, a única pessoa que manda é o dono da corporação. Quanto às pessoas que temporariamente ocupem qualquer cargo de chefia resta apenas a sensação de que mandam alguma coisa quando na verdade o que fazem é somente repassar ordens que lhe foram repassadas por alguma ocupante do nível de chefia imediatamente acima.
Uma consequência imediata da enorme quantidade de pessoas que não conseguem resistir à tentação referida no parágrafo anterior é a abundância de pessoas que, podendo ter sido excelentes profissionais atuando com técnicos, tornam-se péssimos profissionais atuando como gerentes. Tendo atuado durante 3,7 décadas no mundo corporativo, digo-lhes que, pelas minhas observações, a referida abundância engloba mais de 90% do contingente composto pelos gerentes que conheci. Encontrar pessoas com vocação para ocupar cargos de gerência é algo comparável a encontrar agulhas em palheiro.
Faça amigos
"- Há quem diga que o escritório é apenas um lugar para trabalhar e ir embora. Mas as conexões fazem o trabalho ser mais agradável. É importante quando sabemos que temos um melhor amigo no trabalho - diz a pesquisadora.
Laurie defende então, uma regra para qualquer um que queira fazer amigos, independentemente do local:
- Seja positivo e esteja disposto a se comunicar. Não é para ser simpático o tempo todo, mas não somos um robô de inteligência artificial que só faz suas tarefas e se desliga - afirma Laurie Santos."
Sim, são "as conexões que fazem o trabalho ser mais agradável", até porque como diz Vimala Thakar, já no título de um de seus livros, "Viver é relacionar-se". Sim, como afirma Laurie Santos, "não somos um robô de inteligência artificial que só faz suas tarefas e se desliga". Somos pessoas que além de fazerem suas tarefas devem ligar-se em fazer amigos. Há muitos anos, ouvi de um palestrante a seguinte afirmação: "Se os homens fossem realmente inteligentes eles só fariam amigos".
Curiosamente, enquanto elaborava esta postagem, recebi de um jovem ex-colega de trabalho um vídeo que, até o momento da publicação desta postagem, era encontrável no endereço https://x.com/arr_maiana/status/1777146882436829216?t=JnULwyxjJkhx-s_c5FHYug&s=08. Um vídeo em que a psicanalista Maria Rita Kehl faz um comentário sobre nossa relação com o trabalho. A duração do vídeo é de apenas 01 minuto e 26 segundos.
Embora defenda a ideia que a felicidade no trabalho beneficia as companhias, é aos trabalhadores que a cientista cognitiva Laurie Santos oferece sugestões "para o árduo caminho de se buscar felicidade no trabalho". Após assistir o vídeo, fiquei imaginando como seria uma conversa entre a psicanalista e a cientista cognitiva. Será que Maria Rita Kehl concorda com Laurie Santos quanto à possibilidade de encontrar felicidade no trabalho?