quarta-feira, 25 de março de 2020

Vivemos um totalitarismo financeiro, em que tudo é justificado pelo mercado

"Há homens que lutam um dia e são bons,
 há outros que lutam um ano e são melhores;
 há os que lutam muitos anos e são muito bons,
 mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis."
(Bertolt Brecht [1898 – 1956], dramaturgo, poeta e encenador alemão)
Por que inicio esta postagem com essas palavras de Brecht? Porque acredito que ele classificaria como imprescindível o entrevistado na reportagem-entrevista nela reproduzida. Afinal, prosseguir atuando em prol de um mundo melhor aos 80 anos é algo que só os imprescindíveis fazem.
Intitulada Vivemos um totalitarismo financeiro, em que tudo é justificado pelo mercado, a reportagem assinada por Fernanda Mena foi publicada na edição de 15 de março de 2020 do jornal Folha de S.Paulo. Quem é o entrevistado? O jurista e magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Vivemos um totalitarismo financeiro, em que tudo é justificado pelo mercado
Para juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, regime pretende criar sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos
O mundo está revivendo tempos de pulsão totalitária. Mas, ao contrário do período entreguerras, quando o fascismo e o stalinismo eram os inimigos dos direitos humanos, hoje esse lugar é ocupado por um totalitarismo financeiro, baseado na ideologia neoliberal, que pretende explicar o mundo a partir das regras do mercado.
É assim que o jurista e magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, interpreta o espírito do tempo da política global. "O neoliberalismo e o discurso da mídia fazem com que tenhamos a impressão de que o mercado explica tudo."
Aos 80 anos, ele vê com preocupação as consequências para a América Latina desse tipo de regime, que pretende "criar uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos – que acreditam que não estão excluídos."
Zaffaroni é considerado uma das maiores autoridades mundiais em Direito Penal e é tido como um expoente entre juízes garantistas – aqueles que zelam pelas garantias constitucionais e pelo direito de defesa dos cidadãos de modo a evitar a arbitrariedade do Estado, permitindo que o processo seja justo.
Autor de mais de 20 livros jurídicos, o argentino é crítico da mídia e da indústria do entretenimento, que vê como propagadores de discursos de vingança responsáveis por passar a ideia de que a pena de prisão é a única maneira de solução para conflitos.
Ele esteve no Brasil na semana passada para um seminário sobre sistema penal promovido pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
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O discurso refratário aos direitos humanos no Brasil ganhou as urnas, defendendo a ideia de que eles existem para defender criminosos. Por que essa rejeição ganhou tanta força?
Por conta das mídias regionais, monopólicas e hegemônicas, que estão a transmitir a ideia de que direitos humanos são usados para defender criminosos e que as demais pessoas não são defendidas por eles. E o resultado é a pulsão totalitária que estamos vivendo hoje.
Dá para falar em totalitarismo?
Não se trata do mesmo totalitarismo do entreguerras: o fascismo ou o stalinismo. É um totalitarismo financeiro, que bebe também na mídia hegemônica e no neoliberalismo. No fundo, ele está ocultando uma pulsão totalitária do poder financeiro: grandes monopólios, grandes corporações transnacionais. No hemisfério Norte, os CEOs das grandes empresas transnacionais estão ocupando o posto da política. Ou os políticos são reféns deles. Então hoje estamos sofrendo um novo colonialismo, ou uma nova variável do colonialismo, que não é o neocolonialismo nem o colonialismo originário, mas uma subordinação através do endividamento dos nossos países.
O neoliberalismo e o discurso da mídia dominante fazem com que tenhamos a impressão de que o mercado explica tudo. É como se as razões de mercado explicassem todas as nossas relações. É uma ideologia totalitária e contrária aos direitos humanos, que não surgiram porque, um dia, homens e mulheres refletiram e ouviram a razão. Eles surgiram porque aconteceu a Segunda Guerra Mundial, em que o genocídio não foi mais na África e nas Américas, mas na Europa, e os mortos tinham tão pouca melanina quanto seus pares europeus. E isso gerou medo.
Qual é a função da punição nesse novo totalitarismo?
O projeto desse totalitarismo é criar uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos. Mas os excluídos têm de acreditar que não estão excluídos, que este é o normal e é o melhor que pode acontecer.
Para isso, cria-se um inimigo comum, que é aquele sujeito negro, pobre, sujo e sexualmente desordeiro – uma imagem reforçada pela mídia. E esse inimigo tem a mesma função que a casta dos excluídos na Índia: os outros acreditam não fazer parte dessa casta inferior, que pode ter componentes racistas ou apenas de classe, e acabam aceitando sua condição sem perceber que são tão pobres e tão excluídos quanto aquela casta.
Outra característica da exclusão desse totalitarismo é a meritocracia, a crença de que tudo o que se tem é fruto da sua luta individual e, portanto, de merecimento. Como se esses indivíduos não fizessem parte de uma sociedade e não houvesse um Estado a prover direitos básicos. Tudo se torna mérito pessoal, o que cria pessoas mesquinhas.
O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo e cadeias superlotadas. Prender demais e manter presos em condições degradantes é ruim apenas para eles ou gera problemas fora das cadeias?
O problema da degradação das prisões no Brasil não é só dos presos. É um problema político geral do Brasil como Estado. Porque isso gera violência. Porque estão introduzindo em uma cadeia degradada um garoto que fez um pequeno furto ou estava vendendo maconha na esquina, e que vai ter de se incorporar a um bando de criminosos organizados. E vai sair da cadeia muito pior. Estão produzindo homicidas.
Como discursos depreciativos aplicados a grupos não brancos, exaltados na atual política brasileira pelo próprio presidente, corroboram esse cenário?
Cuidado: a situação que estamos vendo no Brasil, com o sistema penal criando um problema de segurança nacional, não foi inventada por Bolsonaro. Trata-se de um problema que tem 30 anos, período durante o qual passaram pela Presidência todas as cores políticas. E, infelizmente, seja por omissão ou por medo de perder votos, ninguém fez nada: Fernando Henrique, Lula, Dilma... Bolsonaro não é o autor disso.
De que maneira a questão prisional enfraquece o Estado?
Se há, no Brasil, quase 800 mil presos e outras 600 mil pessoas com ordens de detenção que não são cumpridas, temos 1,4 milhão de pessoas sob processo penal com cadeia ou ordem de prisão. Experiências judiciais apontam que em varas criminais há mais pessoas processadas em liberdade do que pessoas processadas cumprindo tempo de prisão. Então o Brasil deve ter pelo menos 3 ou 4 milhões de pessoas sob processo penal. Cada uma delas está em contato cotidiano com outras cinco ou sete pessoas (pais, filhos, tios, primos, amigos). Para essa parcela da população acaba banalizando a coisa penal porque sua rotina inclui ir à vara, ir ao presídio... É alarmante quando uma parte da população lida com a questão penal com a mesma naturalidade com que vai ao pronto-socorro. A coisa penal tem de ser excepcional, e não banal.
Por que tem-se a impressão de que o sistema internacional de direitos humanos não é eficiente em conter violações?
O sistema não é eficiente na solução dos casos particulares. Temos um sistema em que a vítima não pode recorrer diretamente à Corte Interamericana. Então, a eficácia do sistema não é na solução co conflito particular. Mas tem uma eficácia diferente, que é a de baixar linhas jurisprudenciais. A nossa jurisprudência é usada para exigir essas soluções aos tribunais nacionais e aos tribunais supremos.
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Eugenio Raúl Zaffaroni, 80
Nascido na capital argentina, é o atual diretor do departamento de direito penal e criminologia da Universidade de Buenos Aires, foi juiz da Suprema Corte da Argentina entre 2003 e 2014 e, desde 2015, é juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos; tem mais de 20 livros publicados
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"Uma sociedade com 30% de incluídos e 70% de excluídos"! Será que faz algum sentido chamar algo assim de sociedade? Será que faz sentido chamar de sociedade algo "em que tudo é justificado pelo mercado"? Afinal, buscando em https://www.significados.com.br/ o significado de "sociedade" lá encontrei o seguinte resultado: "Sociedade é um conjunto de seres que convivem de forma organizada. A palavra vem do Latim societas, que significa "associação amistosa com outros" (os negritos vieram na busca). Será que faz sentido uma "associação amistosa com outros" implicar em 70% de excluídos?

Um comentário:

wilson moreira disse...

Este texto deveria ser ampliado no tamanho de suas letras e fixado nos murais das universidades da vida como fonte de instigação das intelecções que as salas de aula acadêmicas não espacionam talvez por ausência de perspicácia pedagógica ou por simples didatismo primitivista.
Wilson Moreira, hoje morando em Curitiba, Brasil.