quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Eu sei, mas não devia



Em uma sociedade que adotou o descartável, eu sei que nós nos acostumamos a dar importância apenas ao que é recente, mas não devíamos. Existem coisas que resistem ao tempo e permanecem atuais. É o caso do texto da escritora e jornalista Marina Colasanti que empresta o título a esta postagem. Ele foi publicado em 1972 e republicado, em 1995, em um livro editado pela Rocco. Nele, a autora começa dizendo o seguinte:
“Quando escrevemos uma crônica, um conto, um poema ou até um romance, não sabemos a quem vamos tocar. E às vezes nos surpreendemos. Assim foi com a crônica que dá título a este livro, única antiga em meio a textos recentes. Escrita em 1972 para o Jornal do Brasil, venho reencontrando-a constantemente desde então, copiada, reproduzida, guardada, publicada em pequenos jornais, em folhetos, até cartões de fim de ano. Eu a republico agora não apenas para atender a quem pediu, mas como uma maneira de reverenciar o público que, tantas vezes, sabe mais do que o autor. Pois justamente essa crônica hesitei em publicar, temendo que expressasse emoções por demais pessoais”.
Eu sei que muitos já leram este texto e, talvez, não queiram lê-lo de novo, mas não deviam.
“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir o telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde em si mesma.”
Todos nós poderíamos acrescentar alguns parágrafos ao texto acima - e ele ficaria enorme -, pois, infelizmente, a cada dia a gente se acostuma a mais coisas, mas não devia. A próxima postagem pode ser vista como uma espécie de antítese desta. Ela focaliza algo que a maioria não sabe, mas devia.

3 comentários:

Jacy disse...

Oi, Guedes!
Tenho entrado no seu blog quase todo dia e de fato acho que o texto da Marina Colasanti será sempre atual.
Existeam vários textos nas mais diversas áreas que quando olhamos a data de publicação não acreditamos que possa ser tão antigo e ao mesmo tempo tão atual...
Parabéns pelo seu blog!

Guedes disse...

Oi, Jacy
Considero bastante verdadeira a seguinte frase: “Pense nisso: O que fazemos conosco agora é o mais importante para o amanhã. Se não fizermos nada para mudar nossa atitude e o nosso modo de atuar, amanhã parecerá ontem exceto pela data”. O fato de a maioria nada fazer para mudar o modo de atuar é que dá a textos como este de Marina Colasanti uma longa validade. É por isto que é assim, mas não devia.
Obrigado por prestigiar o meu blog e pelos parabéns que me enviou.
Beijos,
Guedes

CJ disse...

Bom texto de reflexão.

Abs,