terça-feira, 19 de novembro de 2024

O precariado (final)

Continuação  de quarta-feira
Época – O senhor alertou em 2011 que, caso os partidos tradicionais não se dirigissem a essa classe emergente, os partidos populistas o fariam. Isso soa como um presságio, considerando a Brexit e a ascensão de Trump. Em que os grupos tradicionais políticos falharam?
Standing – Os antigos partidos social-democratas na Europa, e mesmo o PT no Brasil, tentaram construir uma sociedade ao redor da formação de empregos, focando no trabalhismo tradicional, em vez de olhar para a ideia de trabalho como um conceito mais amplo. Ao mesmo tempo, a centro-direita tradicional e seus partidos se tornaram cada vez mais moralistas, dizendo: você só precisa cumprir seu dever, obedecer à lei etc. Esses dois grupos estão encolhendo em todo lugar, porque não entendem o precariado e não oferecem um futuro de segurança de renda para ele. Isso deixou um espaço para os populistas neofascistas como Trump e Marine Le Pen na França.

E também está associado à Brexit, porque muitos dos votos para a saída vieram da primeira facção do precariado. Estamos vendo a política do precariado se desenvolver enquanto as estruturas políticas não estão em sintonia com a realidade do precariado.

 "Os partidos tradicionais estão encolhendo em todo lugar porque não entendem o precariado"
Época – A elite acordou para esse assunto, como mostrou sua presença em Bilderberg. O que acha de suas ideias serem discutidas nos fóruns econômicos mundiais?
Standing – Fiquei muito surpreso – e contente – por ter sido convidado para Bilderberg. A elite passou a entender que, a não ser que haja alguma resposta para as inseguranças, frustrações e desigualdades associadas ao precariado, toda a estrutura do mercado global estará ameaçada. É um sinal de que uma agenda política mais progressista está emergindo. Bernie Sanders, nos Estados Unidos, e Jeremy Corbyn, no Reino Unido, ainda são parte da antiga esquerda, mas começaram a vocalizar a necessidade de uma nova política. Sanders e Corbyn não são o futuro. Mas podem abrir os caminhos para uma política nova e quebrar o molde dos social-democratas do século XX.
Época – Trump ganhará em 2016 falando ao precariado?
Standing – Trump está apostando na classe ex-trabalhadora, branca, masculina, mas não conversa com a segunda e a terceira facções do precariado. Trump é um demagogo e representa o pior aspecto da política moderna, mas Marine Le Pen é mais perigosa, porque ela usa uma linguagem que atrai uma parcela maior do eleitorado francês. Durante o próximo ano, veremos uma segunda geração de populistas que será mais esperta e inteligente do que Trump. Nós precisamos entender que estamos nos aproximando perigosamente de ter gente como eles sendo eleita para postos políticos importantes.
Época – Como lidar com os problemas levantados pelo precariado sem incorrer em políticas populistas?
Standing – A única forma de combater políticas populistas é ter uma agenda progressista para o precariado. Não vamos vencer isso com mais autoritarismo, ou mais neoliberalismo, ou mais apelos às pessoas sobre passado e decência. Acredito que ter uma renda básica será logo visto como um direito humano universal. Nossos salários, em média, não vão subir no futuro próximo, porque os salários na China estão muito abaixo dos salários no Brasil e ainda mais abaixo dos níveis europeus e americanos. Ao mesmo tempo, a renda dos rentistas está subindo. É preciso deslocar parte desse capital rentista para essas pessoas, e a única forma de fazer isso é ter uma renda básica para todo mundo. Não é uma panacéia, mas é parte de um novo sistema de distribuição de renda. Ao menos que nós nos movamos nessa direção, as ameaças que estamos vendo piorarão.
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"A ascensão nos Estados Unidos de demagogos como Donald Trump e a Brexit (a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia) chamaram a atenção para o trabalho do economista britânico Guy Standing, sobre uma nova classe social que está por trás da explosão de raiva dos eleitores do mundo ocidental desenvolvido. Professor da Universidade de Londres, Standing estuda desde a década de 1980 o precariado, como foi batizada a crescente massa de pessoas que vivem em permanente insegurança em relação a seus empregos, rendas, vida.".

O tempo lhe deu razão – e Standing passou a ser convidado para eventos ultrasseletos como a Conferência de Bilderberg (depois de Davos, o mais importante fórum econômico internacional), realizada em junho na Alemanha. 

Os dois parágrafos anteriores foram extraídos do trecho que antecede as perguntas de uma entrevista intitulada "Estamos perto de ter gente como Trump no poder", concedida há 8 anos e 3,5 meses. O tempo passou, "estar perto de ter gente como Trump no poder" a cada dia se acentuou, e, apenas 5 meses após a publicação de tal entrevista, no poder Trump se instalou.

O tempo continuou passando, afinal, como já cantava Cazuza, "O tempo não para", e coisas lamentáveis continuaram ocorrendo; algumas lá, outras cá. Cá, a ascensão de um fã de Trump que culminou em sua eleição para a presidência deste país. Lá, o retorno de Trump à presidência, provocando o eriçamento da legião de fãs que ele tem cá. Retorno que espero que consiga cá provocar algo citado no terceiro parágrafo acima: "Chamar a atenção para o trabalho do economista britânico Guy Standing, sobre uma nova classe social que está por trás da explosão de raiva dos eleitores do mundo ocidental desenvolvido."

"Explosão de raiva dos eleitores de um mundo desenvolvido"?! Mundo desenvolvido em que, cara pálida? Em estupidez, talvez. Definitivamente, não dá para discordar da seguinte afirmação de Abert Einstein: "Existem apenas duas coisas infinitas - o universo e a estupidez humana. E não tenho tanta certeza quanto ao universo."

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O precariado (I)

"O precariado, termo criado nos anos 1980 pela combinação do adjetivo "precário" e do substantivo "proletariado", é uma classe emergente composta por um número cada vez maior de pessoas que levam vidas de insegurança, entrando e saindo de empregos que conferem pouco significado a suas existências.
Este livro trata de responder a cinco questões fundamentais acerca do precariado: O que é essa classe? Por que devemos nos preocupar com seu crescimento? Por que ela está crescendo? Quem está ingressando nela? Para onde está nos levando? Esta última questão é crucial.
Os dois parágrafos acima foram extraídos do livro O precariado – A nova classe perigosa, de autoria do economista britânico Guy Standing, publicado pela Editora Autêntica em 2011. Livro do qual tomei conhecimento ao ler uma entrevista concedida pelo autor publicada na edição de 1º de agosto de 2016 da revista Época.
Intitulada "Estamos perto de ter gente como Trump no poder", a referida entrevista impressionou-me tanto que a transcrevi na minha pasta de ideias a serem espalhadas. Três meses após a publicação da entrevista, Trump foi eleito presidente dos EUA o que levou-me a pensar em espalhar a entrevista em uma postagem sob o longo título "Será que o economista britânico sabia quão perto estávamos do que ele dizia estar perto de ocorrer?". Acabei não publicando tal postagem naquele momento, o tempo passou, a intenção de publicá-la não foi concretizada, porém tal intenção jamais saiu da minha mente. Sendo assim, oito anos e três meses depois, diante da volta de Trump ao poder, embora tardiamente, segue a primeira parte da elucidativa entrevista. Em relação a determinadas coisas, como diz uma antiga frase: "Antes tarde do que nunca."
O uso do método Jack – vamos por partes -, conforme já explicado algumas vezes neste blog, visa não desestimular leitores de menor fôlego, ok? Segundo minha insuspeita (!!) opinião, tal entrevista é algo que precisa ser lido para que possa ser entendida a encrenca em que estamos metidos.
"Estamos perto de ter gente como Trump no poder"
  O economista britânico diz que a explosão de raiva dos eleitores ocidentais se deve ao crescimento de uma classe social, o precariado, que nunca terá um emprego formal na vida
A ascensão nos Estados Unidos de demagogos como Donald Trump e a Brexit (a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia) chamaram a atenção para o trabalho do economista britânico Guy Standing, sobre uma nova classe social que está por trás da explosão de raiva dos eleitores do mundo ocidental desenvolvido. Professor da Universidade de Londres, Standing estuda desde a década de 1980 o precariado, como foi batizada a crescente massa de pessoas que vivem em permanente insegurança em relação a seus empregos, rendas, vida. No livro O precariado – A nova classe perigosa (Editora Autêntica), de 2011, Standing alertou que a insegurança que caracteriza essa classe teria um impacto nocivo no cenário político.
O tempo lhe deu razão – e Standing passou a ser convidado para eventos ultrasseletos como a Conferência de Bilderberg (depois de Davos, o mais importante fórum econômico internacional), realizada em junho na Alemanha. Nesta entrevista, ele falou sobre como o precariado está desafiando as tradicionais estruturas políticas a se reinventar.
Época – O termo precariado começou a ser usado na década de 1980, mas foi o senhor quem o popularizou. O que caracteriza o precariado?
Guy Standing – O precariado consiste nas pessoas que se mantêm com empregos temporários, de meio período, casuais. São milhões de pessoas, muitas com educação superior ou diploma do ensino médio, que estão sendo postas em circunstâncias nas quais elas não têm uma narrativa ocupacional que possam dar sua vida. Isso cria uma insegurança existencial, porque elas sentem que não pertencem à sociedade. Além disso, o precariado tem de trabalhar muito em atividades que não são reconhecidas como trabalho. Se você está no precariado, tem de fazer muito networking, treinamentos, entrar em filas, preencher formulários. Ao mesmo tempo, essa classe tem um nível de estudo que está acima do nível de trabalho que ela pode esperar. Isso cria frustração.

Outro aspecto do precariado é que essa classe não tem acesso a benefícios sociais das empresas nem do Estado. Então enfrenta uma insegurança constante em relação à renda, especialmente porque os salários do precariado flutuam muito.

Época – Quais são as condições de vida do precariado?
Standing – O precariado vive à beira de um endividamento insustentável e se torna um alvo enorme de exploração. Ao mesmo tempo, o precariado não tem acesso à seguridade social, porque não tem registro de contribuição nem empregadores fixos e regulares. E, finalmente, o precariado se distingue porque esse é o primeiro grupo na história que sistematicamente perde direitos civis, sociais, culturais, políticos e econômicos. Não são as formas de trabalho e emprego que definem as pessoas do precariado, mas o fato de que elas são suplicantes que precisam pedir a autoridades por benefícios, ajuda, seguro, favores, qualquer coisa.
Época – De acordo com suas estimativas, o precariado representa entre 40% e 45% da força de trabalho em muitos países. O que essa insegurança de renda e esse "status de suplicante" significam em termos comportamentais?
Standing – Todas essas circunstâncias criam o que eu chamo de quatro "A". O primeiro A é ansiedade. O segundo A é alienação. As pessoas têm de fazer muitas coisas que não querem fazer e não podem fazer o que gostariam de fazer. Então, elas se sentem alienadas. O terceiro A é anomia, que significa um sentimento de desespero em relação às próprias circunstâncias. Isso leva ao quarto A, que é a raiva (anger, em inglês). Essa raiva está favorecendo políticos populistas e neofascistas na Europa e nos Estados Unidos.
Época – O senhor atribui boa parte das revoltas recentes – da Primavera Árabe ao movimento Occupy Wall Street – à ascensão do precariado como uma massa raivosa, mas sem consciência própria. Isso mudou?
Standing – O precariado consiste basicamente em três facções. A primeira é formada por pessoas que não têm altos níveis de educação, vêm de comunidades tradicionais de trabalhadores e olham para o passado, no sentido de ver o que os pais tinham. Esse grupo é facilmente manipulado pelos populistas e neofascistas. A segunda facção é formada por pessoas que não têm um lar, os migrantes, as minorias, os deficientes, que se sentem privados de tudo. Esse grupo é desorientado politicamente e pode ir para qualquer lado. Alguns deles recorrem a medidas extremas de autodestruição, suicídio, doenças sociais, mesmo o terrorismo individualizado irracional. A terceira facção é formada pelos jovens com altos níveis de educação que foram empurrados para o precariado. A esse grupo, foi prometido um futuro, quando eles estavam na universidade. E eles terminam endividados e frustrados. Esse grupo participou das revoltas da Primavera Árabe, do movimento Occupy, do Indignados, na Espanha, e assim por diante.

No início, essa facção estava mais unida pelas coisas que a eles se opunham do que pelas que defendiam. Isso vem mudando. Esse grupo educado atingiu um estágio de compreensão sobre a situação estrutural e passou a se ver como parte de uma classe emergente. Essa facção agora atingiu o ponto de exigir representação no Estado. Vemos grupos como o Podemos, na Espanha, o Syriza, na Grécia, e diversos outros surgindo para representar o precariado.

Termina na próxima terça-feira

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Reflexões provocadas por "Visionário ou delirante?"

"Qualidade de algo ou alguém que é idealista, que tem ideias extravagantes e incomuns, acreditando estar enxergando tendências ou conceitos que estão à frente de seu tempo", eis um significado para o termo visionário, obtido em https://www.significados.com.br/visionario/.
"Perturbação mental caracterizada pela presença de alucinações, desorientação, confusão etc. Modo de pensar desorganizado, ilógico.", eis um significado para o termo delírio. Alguém que esteja em estado de delírio, eis um significado para o termo delirante.
"Visionário ou delirante?", eis a indagação que intitula a reportagem da jornalista Elaine Guerini que provocou estas reflexões. Indagação que tentarei responder após a interpretação de alguns trechos da reportagem.
"A ideia central de 'Megalópolis' começou a ser desenvolvida no início da década de 80 como uma fábula de ficção científica inspirada na queda de Roma e ambientada em um cenário futurístico nos EUA, dominado pelas elites. Trata-se de uma visão crítica da sociedade, contrapondo na cidade chamada Nova Roma o idealismo do arquiteto Cesar Catilina ao conservadorismo do prefeito Franklyn Cicero, cego pela ganância."
"É uma alegria ver 'Megalópolis' pronto após todos esses anos.; um projeto que acalentava há mais de 40 anos. 'Desde que tive a ideia, eu a desenvolvi em momentos diferentes da minha vida. E quando abandonava o projeto, dizia para mim mesmo que não deveria fazer isso'", conta Coppola.
"E quando abandonava o projeto, dizia para mim mesmo que não deveria fazer isso'", conta Coppola, referindo-se a "um projeto que acalentava há mais de 40 anos". Ou seja, se há dúvida quanto a ser ele um visionário ou delirante, no meu entender, não há nenhuma dúvida quanto a ser ele um persistente. Persistência! Eis algo imprescindível para se conseguir realizar qualquer coisa difícil nesse percurso que a gente chama de vida.
"No leito de morte, muitas pessoas dizem: 'Eu queria ter feito isso ou aquilo'. Quando eu morrer, vou dizer que fiz o que queria, que vi minha filha ganhar um Oscar [...], que produzi o meu vinho e que ainda rodei todos os filmes que queria."
E ao dizer que, no leito de morte, "dirá que fez o que queria, que rodou todos os filmes que queria", Coppola deixa-me um pouco intrigado, eu explico. Por que ele deixou 'Megalópolis' para ser produzido, digamos, no trecho final de sua vida? Como "harmonizar" a declaração de que "rodou todos os filmes que queria" com o que é dito no trecho da reportagem reproduzido a seguir.
"Senti que 'Megalópolis' deveria ser assim. E como eu paguei por ele, achei que tinha o direito de fazer do meu jeito", diz Coppola.
Ou seja, será que nos demais filmes por ele rodados, ele não teve o direito de fazer do seu jeito? Como seria o filme 'Megalópolis', um projeto que ele acalentou por mais de 40 anos, se não tivesse sido feito do seu jeito? De quem deve ter sido o jeito usado nos demais filmes que ele rodou? Será que nesta sociedade (sic) fundamentada no dinheiro, as coisas são feitas do jeito de quem as paga?

A indagação que encerra o parágrafo anterior seria deixada sem resposta se ao lê-la, na revisão final do texto, eu não tivesse lembrado de algo lido em uma reportagem de Elaine Guerini publicada em 18 de agosto de 2023. Uma reportagem produzida a partir de uma entrevista com Ken Loach, um renomado cineasta britânico de 88 anos, da qual extraí o parágrafo reproduzido a seguir.

"'Tudo gira em torno de quem tem o dinheiro, o poder e o controle', afirma Loach, sempre disposto a atacar o neoliberalismo. Sua declaração tanto vale para a promoção de seu último trabalho, 'The Old Oak', vencedor do Prêmio do Público na recém-encerrada 76ª edição do Festival de Locarno, quanto para a atual greve dos roteiristas e dos atores em Hollywood, que o cineasta acompanha atentamente pelo noticiário."

A reportagem pode ser lida na íntegra na postagem publicada em 21 de agosto de 2023 intitulada "Um cineasta sempre engajado".
"Até os sentimentos que desperta são tão exagerados quanto a própria superprodução, uma releitura da queda de Roma ambientada em Nova York futurista que é considerada um 'desastre' por uns e uma 'obra-prima' por outros. [...] Os obstáculos encontrados por um arquiteto visionário que quer salvar o mundo são só um ponto de partida para o cineasta discutir política, sociologia, ciência, física, utopia e futuro.", diz Elaine Guerini.
Considerar uma mesma coisa um 'desastre' e uma 'obra-prima', eis uma estranha consideração frequente nesta sociedade (sic) fundamentada na indiferença em relação ao que acontece com os outros. Uma obra-prima, eis como Dubai é vista pelos extasiados turistas que a visitam; um desastre, eis como é vista pelos escravizados trabalhadores que a construíram. Indiferença, eis um dos enormes males que assolam este insano planeta. "O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença.", eis uma repetida afirmação cunhada pelo psicólogo austríaco Wilhelm Stekel, em 1921, e posteriormente atribuída a outros autores, dentre eles Elie Wisel, Érico Veríssimo e Martha Medeiros. Indiferença, eis o que fica evidente em uma frase que ouvi de um colega de trabalho durante uma conversa: "Mas naquele tempo, para mim, estava tudo bem." E se, para mim, está tudo, que me importa o que esteja acontecendo com os outros, não é mesmo?
"Os obstáculos encontrados por um arquiteto visionário que quer salvar o mundo são só um ponto de partida para o cineasta discutir política, sociologia, ciência, física, utopia e futuro.", diz Elaine Guerini.
Discutir! Analisar e trocar ideias sobre um assunto com a intenção de chegar a conclusões que levem a soluções, eis um significado para o termo discutir que leva-me a defender a ideia de que, ao contrário de uma frase que tanto se repete - política não se discute -, política e futuro são coisas cuja discussão é algo, simplesmente, imprescindível. Até porque, discutir política faz parte da construção do futuro.
"O que está acontecendo nos EUA, na nossa república e na nossa democracia, é exatamente como Roma perdeu a sua república há milhares de anos. Não por acaso nós vemos em artigos de jornais e no programa 'Saturday Night Live' paralelos entre os EUA de hoje e a Roma antiga. [...] Homens como Donald Trump não estão no comando no momento, mas há uma tendência para a neodireita e até mesmo para o fascismo, o que dá medo.", comenta Coppola, preocupado com as próximas eleições presidenciais em seu país, em novembro.
As eleições presidenciais aconteceram, a tendência para a neodireita foi tornada realidade, e Donald Trump foi eleito para estar no comando a partir de janeiro. Será que Coppola preocupou-se tarde demais? Será que seu filme deveria ter sido produzido alguns anos antes?
"'Qualquer um que estava vivo durante a Segunda Guerra Mundial lembra daqueles horrores. E não queremos que a história se repita', afirma o diretor, acrescentando que é trabalho do artista 'iluminar a vida contemporânea'. 'Nós precisamos ser os faróis. Fazer arte que não acende uma luz é como fazer um hambúrger sem qualquer nutriente.'"
Será que o trabalho do artista ('iluminar a vida contemporânea') começou tarde demais? Será que o retorno de Trump indica uma repetição da história?
"Independentemente de como 'Megalópolis' seja lembrado, como uma obra visionária ou como um delírio caótico, Coppola fala como quem não tem arrependimentos.", diz Elaine Guerini, talvez baseando-se nas palavras de Coppola no último parágrafo de sua excelente reportagem, reproduzido a seguir.
"No leito de morte, muitas pessoas dizem: 'Eu queria ter feito isso ou aquilo'. Quando eu morrer, vou dizer que fiz o que queria, que vi minha filha ganhar um Oscar [Sofia Coppola, vencedora de melhor roteiro original por 'Encontros e Desencontros', em 2004], que produzi o meu vinho e que ainda rodei todos os filmes que queria. Vou estar tão ocupado pensando em todas as coisas que ainda tenho que fazer que, quando a morte chegar, nem vou perceber."
"Fiz o que queria, vi minha filha vencer, produzi o meu vinho e ainda rodei todos os filmes que queria", diz Coppola. Será que avaliar se há ou não motivos para se ter arrependimentos é algo que deve ser feito apenas do ponto de vista do que cada um de nós queria fazer? Ou será que é algo que deve ser feito também do ponto de vista do que cada um de nós deveria fazer? Apenas do ponto de vista dos nossos interesses individuais ou também, e principalmente, do ponto de vista dos interesses coletivos? Afinal, como diz Joan Chittister, no livro Bem-vindo à sabedoria do mundo – O que as grandes religiões nos ensinam para viver melhor, "Viemos a este mundo, desde o momento do nascimento, incapazes de agir sem a ajuda de outros. Crescemos, então, nesse nosso propósito: cuidar daqueles que estão ao nosso redor, de forma que, cuidando uns dos outros, possamos todos viver seguros no conhecimento de que somos protegidos e queridos, necessários e amados."
Cumprindo algo que disse no terceiro parágrafo desta postagem, respondo que, considerando os significados descritos no primeiro e no segundo parágrafos, considero Coppola um visionário. Um visionário que talvez tenha demorado demais a usar sua arte e sua capacidade de enxergar tendências ou conceitos que estão à frente de seu tempo para elaborar um alerta com a intenção de 'iluminar a vida contemporânea' e possibilitar enxergar o risco da ocorrência de deploráveis repetições históricas.